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Críticas

Cineplayers

Filme comprova que Chabrol era um mestre na mesma altura de Hitchcock.

8,0

Muitos são os superlativos relacionados a O Açougueiro, de Claude Chabrol (Le Boucher, 1970). Há quem o considere o melhor filme do diretor francês (Pauline Kael preferia A Mulher Infiel), ou um dos melhores suspenses já realizados, até mesmo um dos melhores filmes franceses de todos os tempos. Como bem posicionar essa obra de Claude Chabrol 40 anos depois de seu lançamento?

Quando, em 1957, Claude Chabrol, ainda crítico Cahiers du Cinéma, publicou sua tese de doutorado sobre Alfred Hitchcock – o texto é considerado o primeiro estudo sobre um cineasta então feito e publicado, tanto no âmbito editorial quanto acadêmico –, Hitch ainda era considerado apenas um diretor comercial nos EUA. Foram os “jovens turcos” franceses (porque não gostavam de nada) que viram no mestre um mestre. 

Dentre os críticos da revista que viraram cineastas, Chabrol, mais que Eric Rohmer e François Truffaut, os outros dois fãs incondicionais, é o mais influenciado por Hitchcock, mas, curiosamente, jamais o imitou. Enquanto as louras geladas do inglês desfilavam uma sexualidade inibida e puritana, Chabrol era pura sensualidade e exuberância. Mais do que fazer filmes de suspenses, Chabrol queria mesmo era fazer seus impiedosos retratos da classe média – os crimes e assassinatos aparecem, em seus filmes, geralmente de surpresa. E, como em Hitchcock, descobrir quem é o criminoso não é o motor do filme.

Há em O Açougueiro todos as qualidades do cinema de Chabrol em alto grau: ótimas atuações, enquadramentos fenomenais, esplêndida fotografia (de Jean Rabier), limpidez narrativa, música minimalista e sinistra usada com comedimento (de Pierre Jansen), arguta observação da sociedade da época, no caso os anos 70. Mulher e musa do diretor, Stéphane Audran faz uma diretora de escola de postura feminista, muito avançada para a época, que é cortejada pelo açougueiro da pequena cidade onde moram. Ela aceita sua amizade, mas não seu amor, por conta de uma desilusão amorosa recente.

Uma mulher que não está sempre atrás de casamento é, mesmo hoje, algo diferente e provocativo. Chabrol leva esse pressuposto ao extremo do delírio. Enquanto acompanha o dia a dia da diretora, usando todas as cores locais, esbanja sensualidade, explorando ao máximo a persona da francesa chique e sedutora que ele ajudou a esposa a construir nos vários filmes que fizeram juntos nos 16 anos que foram casados.

Nos trinta primeiros minutos, vemos os carros da polícia ao longe investigando um serial killer que já estava na segunda morte. Só sabemos do acontecido pelas conversas, sempre corriqueiras, das pessoas. Até que a professora leva as crianças para ver raridades arqueológicas numa caverna: é quando descobrem o corpo da jovem por quem a polícia procurava. No local do crime, a professora também acha um isqueiro que ela bem sabia de quem era: foi um presente dela ao açougueiro no dia do aniversário dele.

Tudo que era inocência e flerte num primeiro momento passa a ser tentativa de assassinato, agora que ela desconfia não só que o açougueiro é o criminoso como também que ela seria a próxima vítima. Poucas vezes o cinema trouxe uma mistura das pulsões de sexo e morte de maneira tão escancarada.

Poéticas são as declarações de amor do assassino a sua amada a caminho do hospital, dizendo que matou todas aquelas mulheres porque estava apaixonado pela diretora. Enlouquecido de tesão de vê-la caminhando pelas ruas tão bela e desejável, o criminoso se aliviava trucidando as outras, sem no entanto estuprá-las, preservando-se para sua amada. Bizarro? Nem um pouco. Chabrol é um autor. O mesmo material nas mãos de outro diretor não funcionaria, nem mesmo se fosse Alfred Hitchcock. O universo de Chabrol é tão exclusivo dele que só tem razão de existir em suas mãos.

O filme termina com o assassino esfaqueado pedindo um beijo à diretora. Se fosse um diretor que se deixasse ser influenciado pela culpa cristã, como Hitchcock, haveria redenção, perdão e a certeza de que a beleza pode carregar em si a desgraça. Nada disso aparece no cinema de Claude Chabrol, mestre na mesma altura que Hitchcock (sem conhecer sua popularidade, claro), que prefere fazer seu beijo de morte uma sinistra demonstração do quão tortuoso e obscuro pode ser o desejo humano.

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