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Críticas

Cineplayers

O preto-e-branco pós-revolução.

9,0

Philippe Garrel foi ousado. Não digo "é ousado" pois este é o primeiro filme dele que vejo. Aliás, é a estréia do diretor em telas brasileiras. Por motivos que não consegui descobrir nenhum de seus trinta filmes anteriores (entre curtas e longas) foram distribuídos no país. Nem vem ao caso lamentar o ocorrido em frente a essa bela mostra do que perdemos.

Muitas foram as analogias feitas e desfeitas entre Amantes Constantes e a produção Os Sonhadores, de Bernardo Bertolucci. E é realmente interessante como ambos se cruzam em vários pontos do universo cinematográfico, indo da temática a um dos atores principais - que ambos dividem, sem problemas aparentes – até a jocosa citação do segundo pelo primeiro, numa atitude que desmitifica tanto o maio de 68 como elemento romantizado de criação fílmica, quanto a vontade contida de muitos em apresentar - em filmes cuja ação se passa no passado - alguma referência ao momento presente. Philippe Garrel nos mostra uma maneira charmosa de como fazê-lo, e no caso faz uma referência duplamente válida, pois não só cita Bertolucci pela inevitável semelhança entre os filmes recentes de ambos, como também para rememorar um filme dele, que em 68, já era bastante conhecido da juventude contestadora, o Antes da Revolução. Ou talvez porque o próprio Garrel não quisesse citar-se a si mesmo, já que seu curta Le Révélateur talvez não tenha sido tão visto quanto o longa do compatriota.

Especulações à parte, esse deboche sutil parece absolutamente cabível dentro da atmosfera do filme, que a muitos desagradou pelos "excessivos momentos enfadonhos". Acontece que a vida é cheia de momentos enfadonhos que não podem ser apagados na hora da edição. E em minha opinião o que Garrel propõe é filmar a vida e os sonhos de jovens como aqueles, naquele período da história, naquele específico país. Como uma partida de xadrez filmada em tempo real, vemos os avanços, os retrocessos e a estagnação dos atores.

Antes ainda de falar propriamente do filme, falo de Louis Garrel, ator que recebe pesadas responsabilidades no contexto desta produção (risos): filho do diretor, é entregue a ele o suposto papel de seu pai, desafiando de maneira ainda mais estressante a tensão de representar o pai, sendo ainda ele mesmo. Além do que, em seu segundo personagem saído das ruas de Paris em maio de 1968, Louis se converte na expressão máxima dos atualmente chamados "garotos nouvelle vague", rapazes de beleza não tão eloqüente, que sustentam cabelos de aparência sebosa, roupas que não são trocadas há vários dias e um cigarro sempre a ser suspirado, no canto da boca. Tarefa difícil, que eu e muitas outras pessoas torcemos para que ele suporte.

Para continuar na analogia comum, parece até que Amantes Constantes começa exatamente no momento em que acaba Os Sonhadores, na batalha de rua entre a juventude francesa e os policiais, no ano de 68, já tantas vezes lido e filmado. Mas o filme atravessa o suposto clichê sem medo: toda a encenação da batalha remete a uma atmosfera de sonho, favorecida pelo preto e branco da película; belíssimos movimentos de guerrilha, como lançar garrafinhas de explosivo caseiro, virar carros, correr e esconder-se, encontrar-se e desencontrar-se daquela que será sua musa, para finalmente encostar nos escombros que lembram um canhão e sonhar que todos os combatentes converteram-se em personagens da Revolução Francesa de 1789, numa clara referência ao sonho mais comum entre a juventude francesa daquela época. Em cenas como essa o filme parece converter-se em um estudo de cinema, seja pela utilização de preto-e-branco, seja pela expressão de características da nouvelle vague, ou porque ao ver essas cenas a impressão nítida que tive foi a de estar presenciando o nascimento de um clássico, o que nunca havia me ocorrido com tanta clareza.

A beleza da fotografia é um caso à parte e rendeu o prêmio de melhor fotografia no Festival de Veneza 2006 para William Lubtchansky, em seqüencias que nos fazem tão íntimos dos amantes, que é impossível não ficar feliz em vivenciar essa constante de amor com o cinema.

A sinopse: em meio às batalhas urbanas que ocorreram em maio de 1968 na França, em um grupo de jovens, François (Louis Garrel) - um poeta -, conhece Lilie (Clotilde Hesme) – uma jovem artista plástica – e ambos desenvolvem um relacionamento em que, apaixonados, eles precisam lidar com a paralisia pós-protestos, com o vazio de não ter a certeza do que fazer, deixando-se levar pelo haxixe, criando e se aproveitando da liberdade, tão cara e tão difícil de ser sustentada no dia-a-dia. Ambos estão envolvidos em um ambiente que suscita mudanças, não apenas estruturais, mas pessoais. E essa é a tônica, a grande incerteza que envolve as mudanças! E isso é personificado no filme, não apenas nos protagonistas, mas em todos os personagens.

Nessa representatividade da mudança, Philippe Garrel não só escala o filho para encarnar sua juventude, como trás para cena seu pai, no real papel de avô de seu filho. Três gerações como que para mostrar que, ainda que eles façam parte de uma mesma coisa (a família no caso), cada um é um, com personalidades distintas e bem marcadas. É como forjar uma resposta à acomodação que se seguiu aos arroubos de fúria que marcaram esse momento tão conhecido da história francesa recente. Paixões não suportam o peso de opiniões diferentes demais. E não saber como ajustar os diversos pensamentos divergentes em torno de um objetivo comum foi o que afundou, não só aquela agitação juvenil - que poderia render bons frutos - como o relacionamento de François e Lilie.

Numa viagem que até esteticamente relembra os anos 60 (contemplando a nouvelle vague), o diretor recria vários ambientes, situações e personagens que ele deve ter visto de perto. No grupo de amigos, temos um rapaz excêntrico e rico que disponibiliza sua casa (e muito haxixe) a todos que precisarem, como François depois que sua mãe (interpretada pela verdadeira mãe do ator, Brigitte Sy) resolve ir para o campo e deixar Paris. Ali constitui-se uma república de jovens sonhadores. A maioria deles se auto-intitula ‘poeta’, ‘pintor’, ‘atriz’. Há espaço até para um afeminado rapaz, sempre vestido de forma arrojada e elegante, dando a entender que ele seja a caricatura de algum nome da alta costura. Alguns parecem realmente acreditar que os conflitos históricos geram mudanças. Outros, no entanto, estão ali pelas drogas, por sexo ou simplesmente por companhia.

É dessa forma que Garrel, o Philippe, se encarrega de nos fazer enxergar novamente (mas não da mesma forma) não os episódios vividos ali, mas o espírito geral e juventude que se ergueu naquele instante contra abusos que julgavam imperdoáveis. Sob uma fina e onírica cortina de fumaça, o que ele pretende é nos dizer que todos estavam perdidos! Que aliás, todos assim ainda estamos.

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