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Críticas

Cineplayers

Um filme praticamente perfeito que potencializa a principal virtude de Ray: fazer do minimalismo e do calor humano de seus filmes uma ponte para sensações indescritíveis.

9,5

Nicholas Ray construiu um capítulo a parte na história do Cinema norte-americano, e muito da incompreensão recebida durante seu período de atividade me parece reflexo das próprias condições que impunha ao espectador e, principalmente, pelo que se espera de um filme em Hollywood. Como se percebe conhecendo um pouco mais a fundo vida e obra do cineasta, os filmes de Ray possuem um vasto aparato de elementos que transcendem o modelo acadêmico cinematográfico e conduzem seu realizador a uma categoria praticamente abandonada de cineastas cujos filmes são produtos muito mais sensoriais do que intelectuais.

Ray era o mais minimalista dos cineastas hollywoodianos. Seu trabalho faz muito mais sentido se colocado lado a lado com cineastas como Robert Bresson e François Truffaut do que de Samuel Fuller ou John Ford, dois cineastas tipicamente norte-americanos que sempre serão referencias principais do cinema deste país, especialmente por saberem utilizar e compreender como ninguém os estereótipos e elementos clássicos deste modelo de cinema. Para se aproveitar o que de melhor pode oferecer um filme de Ray é preciso, preferencialmente, deixar de lado algumas manias que normalmente surgem quando há de se analisar uma obra considerada clássica.

Quem procura cenas marcantes ou grandiosas, roteiro intrincado e cheio de soluções brilhantes, ou motivos concretos para colocar seus filmes naquele panteão de obras intocáveis que ainda teimam em alimentar, certamente vai morder a língua diversas vezes. O que menos interessa em Ray é a literalidade da ação dentro daquilo que se constrói em termos de história num filme, a trama em si, e sim a relação dela e dos principais – ou muitas vezes ocultos - elementos da mise-en-scéne com aquilo que o diretor elege como prioridade na construção e evolução psicológica de seus personagens e sua própria visão de Cinema, vida e mundo, normalmente determinantes para o discurso final. Pode parecer egoísmo dele, mas estamos diante de um Cinema muito mais pessoal e, consequentemente, calcado no sentimento do que qualquer outro.

Este Amargo Triunfo, primeiro filme feito pelo diretor fora dos Estados Unidos, depois de ter desgastado quase que completamente sua relação com os estúdios hollywoodianos e cada vez mais afundado no vício em álcool e drogas, é talvez a potencialização deste estilo minimalista de Ray. Ao mesmo tempo em que carrega junto de suas imagens uma força impressionante em relação ao gênero em que se instala, o filme de guerra – tanto pela precisão das cenas de ação ou a luta pela sobrevivência no deserto, capturadas pelo Cinemascope mais bem executado desde que Samuel Fuller provou ser o melhor aproveitador deste formato de imagem em Casa de Bambu , quanto pela sempre presente e natural sensação de desumanidade inalada pelo espírito da guerra em choque com o perfeccionista humanismo de seus protagonistas, que é o objetivo de praticamente todo cineasta que pisa neste terreno, mas que raras vezes foi tão palpável  -, Bitter Victory é todo pontuado por pequenos detalhes, diálogos, planos, gestos ou até mesmo pela sensação de incompletude de certos momentos que no final acabam transmitindo muito mais sensações e reflexões do que uma boa centena de filmes que trazem isto como principais pretensões.

Como já se sabe, este é o filme que fez Godard, à época crítico de Cinema da revista francesa Cahiers du Cinéma, afirmar que “Nicholas Ray é o Cinema”, frase que marcou a história de ambos. Ora, fica bastante complicado, à medida que esta parece ser uma síntese (claro que não se deve levar literalmente em conta, e sim metaforicamente, esta afirmação de Godard, mas é difícil que alguém compreenda-a de forma literal) do que representa Amargo Triunfo ou o próprio Nicholas Ray para o Cinema. Mesmo que não existisse Godard e suas observações sempre pertinentes, o próprio filme e sua consistente perfeição se encarregariam de promover um cerramento de lábios automático. Mas vale a pena encarar o desafio.

Basicamente, a trama de Amargo Triunfo tem muito a ver com a clássica história de Casablanca, com o advento de uma alegoria sobre alguns valores determinantes quando o assunto é guerra, especialmente a relação entre a coragem e o heroísmo, e a tênue linha que separa ambos. Temos dois homens dividindo a atenção de uma mesma mulher. Um deles, interpretado por Richard Burton, havia tido um caso com a moça três anos antes de a história iniciar, mas abandonou-a; outro, seu superior, Curd Jürgens, casou com ela tempos depois. Um dia, antes de partirem para uma importante missão, a mulher vai até a base militar e acaba com o coração dividido por seus dois homens, que sacando isso têm sua relação atiçada pelo campo sentimental. Eles vão para a guerra, enquanto ela espera na base pelo retorno de ambos – ou daquele que sobreviver ao campo de batalha.

Na execução da missão, ambos mostram valores bastante distintos: enquanto o personagem de Jürgens sempre soa como covarde, conforme afirma seu próprio companheiro, Burton enaltece os valores heróicos do soldado, um tipo de heroísmo que sabemos existir apenas nos filmes e que é amplificado pelos belíssimos planos de Ray e pela maravilhosa trilha-sonora de Maurice Leroux. Como sempre um grande estudioso do humano, suas limitações e fraquezas, Ray ultrapassa esta simples questão e propõe durante a jornada pelo deserto uma desmistificação dessas virtudes pré-estabelecidas pelo homem para tentar definir sua própria personalidade. O que resta, afinal, é a dúvida sobre o que seria a coragem e a covardia, especialmente durante uma guerra. Postos em situações-limite durante dias e noites naquela imensidão de areia o que resta ao homem é sobreviver, e mesmo um ato de bravura pode terminar sendo fatídico para sentenciar fracasso. “Matei o vivo e salvei o morto” é o que diz Burton após tentar salvar um homem ferido que ficaria para trás esperando a morte, poucos minutos antes de gastar a última bala de seu tambor poupando o sofrimento de outro dos feridos com um tiro na cabeça.

É nestes pequenos momentos e detalhes que o filme de Ray se torna o grande filme que é. É a força descomunal de algumas cenas, gestos ou palavras. É o brilhantismo da fotografia, enaltecendo a imensidão branca do deserto em um preto-e-branco ora chapado, ora imerso na penumbra da noite. É a trilha-sonora, que por momentos explode em acordes inesquecíveis e, em outros tantos, se cala e permite apenas ao vento e o som do movimento da areia ditar o clima de cena – saber utilizar o silêncio, como por exemplo no embate final entre Burton e Jürgens, é uma lição que poucos diretores aprenderam. É o posicionamento da câmera, a montagem, a passagem de um rosto a outro nos principais diálogos do filme, é saber escolher a imagem certa para justificar o que está sendo dito; ou os próprios diálogos, detentores de algumas das frases mais fortes já reproduzidas em um filme – “Eu sempre contradigo a mim mesmo” afirma Burton depois de salvar o homem que sentenciou sua tragédia de uma tempestade de areia, poucos momentos depois de afirmar a ele que “Você não é um homem; mas um uniforme vazio, parado em pé por si só”. Enfim, é o Cinema em seu explendor máximo, a capacidade de mexer com as emoções e espelhar muito de nós mesmos em um objeto frio como um rolo de celulóide.

Coisas que embora muitos tenham feito, somente Ray conseguia com tamanha intensidade. Nicholas Ray é sim o Cinema. É a representação máxima do quanto ele pode ser pessoal e  humano – e não seria este afinal o grande objetivo da arte, uma vez que tratamos sinteticamente da expressão de alguém sobre alguma coisa? Por estes motivos é que é tão fácil se apaixonar por um filme de Ray. Sentimos carinho, afeição. É uma experiência que transcende a relação entre filme e espectador, que passa acima de todas as coisas.

Comentários (1)

Adriano Augusto dos Santos | domingo, 29 de Dezembro de 2013 - 09:59

E além disso,as cenas de ação da guerra são muito boas também.
Claro que há ausencias (em algumas,na invasão),como sangue,buracos e detalhes do tipo.
Mas são firmes mesmo assim.

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