Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Novo episódio da franquia garante muitos risos e momentos de pura nostalgia.

6,5

Quando foi lançado o primeiro filme, American Pie: A Primeira Vez é Inesquecível (American Pie, 1999), comédia que orbitava em torno do início da vida sexual dos jovens num contexto de ensino médico tipicamente norte-americano, tornou-se um produto cinematográfico de instantâneo sucesso de público, e como era de se esperar, teve diversas sequências caça-níqueis ao longo dos anos seguintes. Entretanto, é interessante observar o início da série sob um olhar atual: o que na época poderia sugerir apenas um simples besteirol adolescente, hoje ganha ares surpreendentemente premonitórios, de profecia – um filme à frente de seu tempo. Conseguiu imensa popularidade nas salas de cinema em 1999, muitos anos antes do surgimento de redes sociais como Facebook, sites de compartilhamento de vídeos como o YouTube, e, de um modo geral, anterior massificação da internet como meio predominante de comunicação, sobretudo ao seu impacto cultural na cultura jovem. E o argumento inédito que o filme trazia consigo, seu grande ato e turning point de roteiro, que, aliás, viria a ser a grande cena e marca de toda a franquia, é o vídeo de webcam que se espalhava pela internet, em que Jim Leveinstein (Jason Biggs) aparece em seu quarto vacilando, com diversas ejaculações precoces, diante de uma frustrada tentativa de primeira relação sexual com Nadia (Shannon Elizabeth). Isso há 13 anos, ainda nos anos 90.

Se o tempo fez bem a série, é contudo um engano atribuir um status de cinema de qualidade a qualquer um de seus filmes. Certamente são comédias muito eficazes, mas tanto neste como em qualquer um dos anteriores a fórmula é exatamente a mesma: um amontoado de cenas desconexas, com gags inegavelmente divertidas sobre sexo, masturbação, nudez, flertes e jogos de conquista juvenis, mas que sempre recaem nos estereótipos fáceis, nos personagens predominantemente rasos, sem obter uma reflexão minimamente densa sobre a condição do jovem, visto que os filmes têm narrativas pouco coesas e enredos nada conclusivos – é simplesmente o humor em torno de situações e tabus sexuais que garante o seu sucesso, sem ousar além disso, talvez com exceção deste último. O que não quer dizer que não sejam sempre divertidíssimos. Entretanto, seria grande injustiça igualar American Pie com séries de pastelão vulgar e sem conteúdo algum, como Todo Mundo em Pânico (Scary Movie, 2000), ou excrecências cinematográficas mais graves, que endossam a boçalidade e a idiotização, como os filmes da série Velozes e Furiosos (The Fast and the Furious, 2001) e Se Beber, Não Case (The Hangover, 2009).

Contudo, American Pie tem sua verdade, sua sinceridade. Há até certa poética cinematográfica, uma fidelidade ao retratar uma sociedade, situar uma geração. O próprio título da série é retirado da antiga canção homônima de Don McLean, que trata do episódio da queda do avião de Ricthie Valens, Buddy Holly e Big Bopper, pioneiros do rock, morte que representaria o fim de uma geração ingênua dos fins dos anos 50 e o rito de passagem para as novas gerações de adolescentes que estariam por vir. Um legítimo retrato norte-americano, ocidentalizado – o que é ser jovem em uma cultura moderna, do capitalismo hegemônico, do sexo como principal recurso publicitário e grande baliza para as relações sociais. Apesar de ser uma comédia comercial enlatada, é muito fácil relacionar ou até mesmo se identificar com alguns pontos e situações levantados no filme com experiências estritamente pessoais, sobretudo com as do tempo de colégio, faculdade, com relações afetivas anteriores e brincadeiras entre amigos. Afinal, não se vive no mundo de Finch (Eddie Kaye Thomas), que traduz Os Irmãos Karamazov para o latim por diversão, e é essencial a vida, como para o próprio cinema, seus momentos de pura descontração, despretensão e escracho – a masturbação no sentido metalinguístico.

Neste filme mais recente, American Pie: O Reencontro (American Reunion, 2012), como o próprio título já aponta, o mote é o reencontro da turma de 99, justamente 13 anos após terminarem o high schoool. Não se trata necessariamente de um filme sobre o rito de passagem para a vida adulta, mas é notável a ênfase em novas etapas que cada um dos personagens têm de passar: inserção no mercado de trabalho, convívio no casamento, falta de sexo no casamento, criação de filhos, frustração diante dos sonhos do passado. O filme traz à tona muitas destas questões embrutecedoras da vida com bastante humor e consistência, o que o faz o mais reflexivo dos filmes da série, conseguindo manter a mesma identidade e proposta dos anteriores.

Há uma carga de nostalgia bastante intensa, o que o torna, de certa forma, uma experiência agridoce. O reencontro dos amigos é também o duro reencontro consigo mesmo jovem, e perceber tudo o que se perdeu, a impetuosidade do tempo. A paixão que renasce entre Heather (Mena Suvari) e Oz (Chris Klein), ele que havia deixado a relação de lado para seguir um sonho profissional em Hollywood – mal sucedido. O reencontro de Kevin (Thomas Ian Nicholas) e Victoria (Tara Reid), um relacionamento que não foi adiante, mas na vida jamais se esquece e deixa-se de sentir algo em relação os amores anteriores – o que sobra, nestes casos? Talvez o momento de maior lucidez e representatividade do filme seja a dura constatação que os amigos fazem ao sempre impagável e divertido Stifler (Sean William Scott): “Não podemos mais viver como antes.”

A questão do generation gap, da diferença entre as gerações, é representada pela apresentação de uma nova personagem, Kara (Ali Cobrin), a antiga vizinha de Jim, criança que ele cuidava, e que hoje virou uma linda mulher de 18 anos que quer perder a virgindade com ele – com a figura protetora, a celebridade do hit da internet. Não há rompimento com a moralidade (os EUA seguem com seus filmes “edificadores” em defesa do matrimônio), mas há um interessante tom melancólico que ecoa nos diálogos dos personagens: “Você não tem a impressão de que os jovens hoje em dia têm vida sexual mais cedo e mais ativa, as coisas são diferentes hoje em dia?” Diagnóstico preciso, visto que Stifler tem de recorrer com certo constrangimento a assuntos como a série de filmes e livros Crepúsculo em seus novos flertes. A dor e o efeito do tempo, da vida que vai e não volta, mesmo em meio aos atribulados e insistentes instantes de gargalhadas, pairam sob uma latente questão da vida.

American Pie: O Reencontro lembra muito a ideia do recente sucesso dos irmãos Farrelly, Passe Livre (Hall Pass, 2011), por conseguir ao mesmo tempo fazer uma comédia eficiente, porém com o triste aspecto da vida, da juventude que passa e que não se pode viver novamente. American Pie é um descendente direto de séries de filmes dos anos 80 como Porky’s, que não continham um protagonista definido, mas com vários personagens que passam por poucas e boas, travessuras hilárias em decorrência das urgências sexuais e sociais. Há o escracho, o grotesco, o pitoresco, e até mesmo a banalidade. Jamais pretensioso, American Pie é de certa forma inspirado no clássico American Graffiti – Loucuras de Verão (American Graffiti, 1973), de George Lucas, quando propõe fazer um retrato de uma geração de forma leve e musicada, uma forma jovem para um filme de contexto juvenil. Seu verdadeiro ancestral é Os Boas-Vidas (I Vitelloni, 1953), do mestre Federico Fellini, que pioneiramente nos anos 50 já fez um filme com diversos personagens que vivem desventuras e peripécias sexuais em busca de um rumo para a vida. Quase como um clássico contemporâneo (assim como Kara em certo momento chama Spice Girls de rock clássico), deixou sua marca e seu legado no cinema norte-americano, percebida em diversas comédias como Superbad – É Hoje (Superbad, 2007), Show de Vizinha (The Girl Next Door, 2004) e praticamente todo filme que destinam ao ator Michael Cera, como Rebelde Com Causa (Youth in Revolt, 2009)

Se colocar lado a lado American Pie com uma obra de Fellini parece heresia, certamente o é. Mas não deixa de ser curioso o caso da série: não necessariamente de qualidade, mas capaz de despertar sentimentos restritos ao grande cinema. Ao estar diante dos filmes e personagens de American Pie, muitas reações e sensações vêm à tona. Se gargalhadas com os dilemas da juventude eram o seu único propósito, com o passar dos anos o contato e a lembrança dos filmes e sua época ganham novas matizes para quem os vê. O poder e a magia do cinema podem ser despertados até em filmes medíocres, pois, na realidade, estão na graça da vida de cada espectador.

Comentários (7)

Giacomo Penachioni | terça-feira, 03 de Julho de 2012 - 12:12

Quando vi, não achei o filme tão bom, embora tenha me deliciado com o tom de nostalgia despertado pela trama. Porém, ao ler esta crítica, estou simpatizando ainda mais com o filme, pelo sincero desejo, por parte dos produtores, em passar uma mensagem um pouco mais profunda daqueles personagens, de suas épocas e atitudes. O tom de nostalgia é bem sutil, mas quase me fez chorar ao final do filme, quando "Laid", da banda James, é executada, quando percebemos que pode ser o final das aventuras daqueles jovens, que o tempo inacreditavelmente passou, que agora eles são adultos, que a vida tomará novos rumos, agora. Pra quem assistiu American Pie na adolescência, como eu, ver aqueles jovens amadurecidos, um pouco frustrados, deslocados, com alguns sonhos perdidos no decorrer da vida, dá uma sensação imensa de tristeza, melancolia, por saber que não se está apenas vendo uma obra de ficção, mas, de certo modo, um retrato bastante íntimo de nós mesmos, de nossa juventude e de nossa época.

Giacomo Penachioni | terça-feira, 03 de Julho de 2012 - 12:17

Dá uma pontada no coração sentir a passagem do tempo, mesmo que seja apenas uma década, e perceber que, como aqueles outrora jovens e imaturos personagens, nós também estamos envelhecendo, entrando em novas etapas da vida, e ter que aceitar que certos aspectos e vantagens da juventude não voltarão mais: é difícil aceitar que aquela geração do fim dos anos 90 hoje já está perto dos 40 anos; que, como diz aquela piada do filme, músicas das Spice Girls hoje já podem ser consideradas "rock clássico"; que os costumes já mudaram, apesar do pouco tempo transcorrido, bem como as músicas, as gírias, e todos os anseios do mundo jovem atual; constatar que, assim como os personaggens de Amerian Pie, todos nós ficaremos mais velhos, com famílias tradicionais, com alguns sonhos frustrados, com perdas pessoas, com vitórias, derrotas, enfim, vidas tradicionais, mundanas, realidades muito diferentes daquela que imaginamos pra nós mesmos, principalmente quando estamos na flor da juventude... Nostalgia..

Giacomo Penachioni | terça-feira, 03 de Julho de 2012 - 12:24

Excelente crítica. E a observação da diferença entre gerações é tocante: nos idos de 1999, a turma de American Pie, principalmente o que representava o personagem de Stifler, formavam o que havia de mais transgressor em termos de "juventude": sexualmente obcecados, loucos pelos prazeres sexuais, irresponsáveis, beberrões, festeiros, eram o símbolo da transgressão, da rebeldia, da precocidade dos novos tempos, ainda que em um contexto conservador, suburbano, cristão. Por incrível que pareça, essa geração já passou, e já temos uma nova, ainda mais precoce, ainda mais "selvagem", mais decidida, menos pudica e com mais liberdade para descobrir os prazeres sexuais, com ainda mais parceiros. Incrível como o tempo passa, e como os "descolados" de hoje rapidamente se tornam os "tiozinhos" de ontem, caretas e ultrapassados. Ai, que tristeza!! rs

Faça login para comentar.