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Críticas

Cineplayers

A falta de amor e o excesso de mão pesada.

5,0

A crítica comenta alguns pontos da trama,
então leia depois de assistir ao filme ou por sua conta em risco.

Há não muito tempo, Michael Haneke, desde sempre um símbolo discutível de um cinema histérico (no conteúdo ou na forma, quando não em ambos) com o qual retrata certas mazelas da contemporaneidade e mal estar europeu, surpreendeu meio mundo cinéfilo que não enxergava seu estilo com bons olhos, ao realizar o superestimado (mas possivelmente seu melhor filme) Caché (idem, 2005). Onde o seu estilo era mais controlado, e a observação humana, menos escandalosa, fazendo com que o acolhimento generalizado a ele parecesse facilmente justificável, quem sabe como uma bem-vinda guinada na carreira do austríaco.

O que se viu, entretanto, foi um passo do cineasta rumo a uma depuração artística no formato de seu cinema, deixando a violência explicita e não raro gratuita de trabalhos anteriores por dramas mais pretensamente acabados, em que esta mesma violência se interioriza nos personagens, podendo então ser aceita por platéias mais amplas com inclinação para gostar desse seu cinema, mas que não teriam estômago pros exageros antigos dele, ou paciência para cacoetes de estilo como imagem sendo transmitidas por vídeo, excessos de pontas pretas (cortes secos para três ou quatro segundos de tela escura), além de certa fragmentação visual ou narrativa. A depuração que se deu em sua obra consolidou de vez seu prestígio, com os dois títulos mais recentes, A Fita Branca (Das weiße Band, 2009) e Amor (Amour, 2012), obtendo com ambos os prêmios máximos em Cannes.

Mesmo assim é preciso ter estômago para este seu último filme. Haneke como sempre trabalha de forma a atacar o espectador. O que se torna mais evidente em momentos como em que o marido, Georges (Jean-Louis Trintignant), bate na esposa, Anne (Emmanuelle Riva), estendida numa cama em que agoniza depois de sofrer um derrame. Ou quando ele tenta sufocar a mulher com o travesseiro. Ou a sequência grotesca do sonho envolvendo o casal. Poderia ser apenas um personagem maltratando o outro (por amor, como parece dizer o cínico Haneke já desde o titulo do seu filme), mas o caso aqui não é o de maldade extrema da parte dos personagens (como para definir suas psicologias), mas sim do próprio diretor, que visivelmente lança mão de momentos como esses para impressionar o espectador de maneira grosseira e afetada, atingindo diretamente ao público, o que não ocorre somente em ocasiões específicas como as mencionadas mais acima: o filme como um todo lida com essa tentativa de incomodar em cima de uma imagem arquetípica de um simpático casal de velhinhos que se encontra vítima de uma fatalidade.

Os olhares, as expressões, os gestos dos dois atores veteranos (sobretudo os gemidos da esposa moribunda se retorcendo em sofrimento) são carregados demais (talvez não cheguem ao overacting, mas estão a um passo) e calculados em excesso, bem como a compaixão e o terror provocados pelas situações de Amour. Como já eram fortemente calculadas não só as intrigas, mas também as imagens soturnas da fotografia em preto e branco de A Fita Branca. Desse modo, os efeitos de tensão em um filme e outro não brotam naturalmente, só vão de encontro aos anseios mais baixos e primários do espectador, mesmo os mais inteligentes, que compram e aceitam a proposta de cinema de Haneke. Seus filmes existem inseridos dentro de uma má consciência desse seu espectador para com o mundo, que tem essa relação despertada (ou enfatizada) pelo trabalho oportuno do diretor, geralmente se aproximando (ou abraçando de vez, como em alguns casos) de um cinema de tese no que isso tem de mais pretensioso, e no qual é fundamental vender um discurso ou uma idéia acima de tudo (no caso de Haneke, a de o quanto há de cruel e de podre no mundo).

Com certeza, existiriam outras maneiras de tratar certas questões com maior dignidade. Basta comparar com um cineasta como Clint Eastwood, que lida também com o tema da eutanásia na parte final de Menina de Ouro (Million Dollar Baby, 2004), não aliviando a barra, resultando também numa tragédia dolorosa, mas sem ofender ou beirar qualquer espécie de sensacionalismo. Já o que Haneke faz é se repetir como torturador de personagens e espectadores, buscando traçar o quadro desesperador de um casal em seu fim, mas em seus piores momentos caindo em um teatrinho filmado com cenários requintados dentro do apartamento onde ele transcorre, e situações dramáticas concebidas por vezes de modo obsceno. A personagem da filha interpretada por Isabelle Huppert termina como um peixe fora d'água, na certa com a atriz requisitada tão somente para acrescentar um prestígio a mais ao filme como um todo, não bastasse o par de veteranos que praticamente representam uma espécie de museu do cinema europeu. Com Amour, Haneke quer ganhar quando tenta um estilo mais sutil que vem sendo elogiado pelos defensores do filme e também quer ganhar quando se trata de não evitar a habitual mão pesada em sua obra, que surpreendentemente costuma ser tolerada e aceita pelos admiradores do diretor austríaco.

E por que a facilidade toda com que os fãs aceitam essa inegável mão pesada com que Haneke se entrega em seus trabalhos? Na certa pelo legado que um grande diretor como Ingmar Bergman deixou como herança cinematográfica com os seus filmes, e do qual Haneke é um dos mais conhecidos seguidores, o que ajuda, além de seu indiscutível talento técnico, com que o austríaco se imponha com mais respeito e legitimação perante parte do público e crítica. Bergman deixou uma obra bastante rica tratando de situações pesadas ou melodramáticas, ou que mostram que o ser humano é cruel, mesquinho, que existe um submundo de intenções, etc., mas que deve ter influenciado negativamente mais filmes que quaisquer outros bons diretores, e isto por vezes dilui o que há de notável na carreira de Bergman. E explica porque, sejamos justos, ele já não representa mais um nome de tanto peso ou referência para uma parcela significativa da cinefilia de hoje em dia quanto havia sido em décadas anteriores. Muito devido a cineastas influenciados por suas obras, mas que se aproveitaram mesmo de alguns dos aspectos mais negativos e pesados da filmografia do sueco, as suas piores tendências à misantropia, ao sofrimento e discussões por vezes pueris, sem irem muito além desses exteriores. Se o crítico francês Jean Douchet, num artigo célebre do começo dos anos sessenta, reclamava dos filhos de Alain Resnais, é porque não imaginava o que seriam os seguidores do diretor sueco. Parafraseando o próprio Douchet, os filhos de Resnais seriam anjos de beleza em comparação com os filhotes de Bergman.

Comentários (58)

Jonas | segunda-feira, 28 de Janeiro de 2013 - 22:41

Concordei com a crítica [2]

Patricia Izilda Silva | quinta-feira, 14 de Março de 2013 - 19:33

Um filme sensível e ao mesmo tempo duro, não concordo com crítica, achei o filme um retrato de muitas realidades por ai😲

Marcelo Mello | segunda-feira, 22 de Abril de 2013 - 15:54

Respeito a opinião, mas todas as críticas dos filmes que Vlademir Lazo não aprecia sempre tem o tom do tipo: "quem gosta é porque se deixou levar". Essa idiotização eufemizada do telespectador incomoda.

Vlademir Lazo | segunda-feira, 27 de Maio de 2013 - 02:36

Marcelo, vou cuidar e prestar atenção nesse ponto que você observa, mas não creio que seja recorrente, no caso de Amor julgo necessário proceder assim porque trata-se de um filme de um cineasta que há pelo menos uns quinze anos angariou um público imenso de admiradores que pouco se importam com questões negativas que levanto no texto e que, estas sim, a meu ver são contumazes na filmografia do austríaco.

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