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Críticas

Cineplayers

Lady Susan redefine a pomposa sociedade aristocrática inglesa de dentro em busca de auto-satisfação.

7,0
Os filmes de Whit Stillman parecem flertar propositalmente com uma certa ambiguidade de valores – morais e sociais, especialmente. Metropolitan (1990), um devaneio novaiorquino construído a partir de Mansfield Park, é bem claro nessa questão ao representar um protagonista pobre e articulado que transita, com uma criticidade tão grande quanto uma admiração, pelos círculos sociais abastados da grande metrópole. Toda a pompa e trivialidade desse universo de alta burguesia são fitados por essa ótica ambivalente de Stillman, um cineasta notavelmente conservador, é verdade, mas que não se nega criar esse retrato com uma dose generosa de ironia.

Amor e Amizade é a primeira adaptação na carreira do diretor, e não poderia vir de outra fonte: a novela Lady Susan, uma das primeiras a serem escritas, embora tenha sido publicada apenas 50 anos após a morte de sua autora, a escritora inglesa Jane Austen. O critico Richard Brody, da revista New Yorker, é preciso ao apontar que o universo austeniano está para Stillman assim como o velho oeste está para John Ford – ambos os cineastas são anacrônicos aos cenários que os inspiram, mas coabitam com estes esteticamente.

No filme, lady Susan Vernon (Kate Backinsale, em uma grande atuação) é uma recém viúva da nobreza que após gastar toda sua fortuna, é obrigada a viver de favor na casa de amigos e parentes. Enquanto abrigada na residência dos Manwaring, ela se envolveu com o dono da casa, sendo obrigada a se refugiar na casa de seu cunhado, Charles Vernon (Justin Edwards). Após conhecer o irmão de sua cunhada, o jovem, bonito e inteligente Reginald DeCoury (Xavier Samuel), ela pretende se casar com ele, ao mesmo tempo em que articula para que Sir James Martin (Tom Bennett) finalmente se case com sua filha, Frederica Vernon (Morfydd Clark).

Essa trama recheada de incontáveis personagens que tramoiam romances uns com os outros é essencialmente aquilo que me parecem ser romances aristocráticos do século XVIII, mas a presença do olhar de Stillman confere ao filme um valor de sabotagem. Se o diretor americano é anacrônico a esse universo aristocrático inglês, Susan Vernon não aparenta também pertencer ao seu próprio tempo. Sua personalidade se define pela busca sem remorsos de seus desejos – do prazer carnal à estabilidade econômica. Existem traços bem marcados de falsidade e enganação nos engenhosos planos da personagem, mas ela não os nega nem se desculpa por eles. Lady Susan é uma presença liberal e refrescante num ambiente recatado e ultraconservador, que se utiliza dos meios que possui e dos próprios paradigmas sociais estabelecidos para tirar daí suas vantagens.

Ainda que Susan seja, com sobras, a personagem mais cativante da peça, os coadjuvantes fazem bom uso do tempo de tela que lhes é entregue – especialmente James Martin, um aristocrata rico e abobalhado, que cria variações de tons no filme, indo do humor abertamente pastelão à mais sutil das cânduras com boa habilidade.

A busca sem escrúpulos pela auto-satisfação não parece uma característica de personagem corriqueira em filmes ou livros que retratam a época de Amor e Amizade. Conter uma personagem que possui essa marca como principal aspecto de sua composição parece conferir ao filme esse caráter de ambivalência e anacronismo, usuais, como já mencionei, na filmografia de Stillman. É, dessa maneira, o filme cabal do diretor, que engloba sua estética, ao mesmo tempo que se constrói a partir de suas principais referências (Austen, e o próprio corpo de atores, em especial Backinsale e Sevigny).

Naturalmente a estética de Stillman não corresponde somente a uma relação irônica e ao mesmo tempo deslumbrada da burguesia. Seus personagens são, acima de tudo, vigaristas eloquentes e hedonistas, que trapaceiam seus caminhos pelos mais diversos círculos da sociedade em buscas de sexo, bebida, festas e companhia. As cenas de seus filmes geralmente são curtas. As mais triviais, personagens andam e conversam enquanto a câmera acompanha lateral ou frontalmente. Quando se trata de uma cena de peso maior, acontecem os planos e contraplanos. Visualmente, não passa disso. Os diálogos e as composições dos planos geralmente dão mais espaço para que Stillman se expresse um pouco mais. Porém, na edição é que seu vigor aparece com mais evidência: nos planos gerais que intercortam a ação, em mudanças abruptas de plano que potencializam o significado da cena, nas intrusões cirúrgicas de trilha sonora que demarcam o que é ruptura e o que é rotina no decurso da história. Para quem não conhece, eu realmente recomendaria dizendo se tratar duma espécie de Woody Allen, mais intelectualizado e com recursos cinematográficos bem mais fartos.

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