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Críticas

Cineplayers

Sólido, bem fundamentado, exigente, sem concessões ao fácil ou a didatismos desnecessários.

8,0

Em 1984, o diretor alemão Volker Schlöndorff reuniu uma equipe de peso para levar às telas Um Amor de Swann, baseado no romance No Caminho de Swann, o primeiro dos sete volumes de Em Busca do Tempo Perdido, um dos maiores êxitos literários da cultura ocidental, escrito pelo francês Marcel Proust no início do século 20. O roteiro saiu a quatro mãos: o dramaturgo, encenador teatral e também cineasta Peter Brook dividiu-se com o roteirista e também dramaturgo Jean-Claude Carrière, um dos melhores no métier (colaborador de Luis Buñuel e Louis Malle). Na câmera, o mago sueco das cores e texturas Sven Nykvist.

O resultado é bastante razoável, com certeza elegante, inteligente e didático, perfeitamente fiel ao original, mas longe da complexidade do livro – mas isso todo filme o será. Os atores estão bem em seus papéis: o britânico (até demais) Jeremy Irons defende o milionário francês Charles Swann, a canastrona italiana Ornella Mutti faz a vulgar e extraordinariamente bela Odette de Crécy, enquanto Fanny Ardant aparece como a fútil e luxuriante condessa de Guermantes e Alain Delon como o arrogante barão de Charlus. Como a prostituta de luxo (ou cortesã, como se dizia na época) Odette era uma mulher sem muito refinamento, que causava em Swann um misto de atração e repulsa, o fato de Ornella Mutti não ser uma atriz convincente pouco importa, pois causa a necessária repugnância e admiração também nos espectadores. Ponto para o filme esse acerto de casting.

Os inúmeros vai-e-vens da história foram simplificados, a multidão de personagens foi drasticamente reduzida, tudo se passa na noite em que Swann finalmente faz sexo com Odette e a famosa cena do baile que abre o livro, longuíssima e tormentosa, só acontece depois de quase uma hora de filme, ou seja, roteiristas e diretor optaram por narrar a história em linha direta, com poucos flashbacks, somente os fundamentais. 

Enfim, filmaram o essencial, ou seja, o que torna o livro No Caminho de Swann tão original: a idéia do ciúme sexual – ou inveja sexual. Swann não tinha ciúme dos amantes de sua amada (até porque ela era uma prostituta), mas sim de sua potência sexual, da capacidade de ela poder fazer sexo com quem conviesse (em geral por dinheiro, diversão ou acesso a festas e reuniões sociais badaladas), em especial se fosse com mulheres. Swann vai se tornando obcecado, procura por suas amigas nos bordéis para que elas lhe contem sobre o passado sexual de Odette, enquanto ele começa a escutar vozes, que ele imagina ser dos amantes de Odette, quando está em seu quarto.

Se o espectador perde o fluxo de consciência de Swann, um mauricinho tolamente levado pelas aparências, acovardado de se casar com uma prostituta que ele ama e ser rejeitado pela sociedade, ganha com uma reconstituição de época admirável, tão exaustivamente descrita no livro, que no filme ganha vida, cores, explode na tela de maneira riquíssima, pois diretor e equipe técnica se esmeraram em reconstruir o universo de Proust à beira da perfeição, tudo embalado pela fenomenal fotografia de Nykvist.

Schlöndorff tem senso de narrativa e leva o filme com força, jamais se descuidando dos inúmeros detalhes, compondo um todo muito requintado sem ser maneirista, aproveitando seus ótimos atores muito bem escalados, recriando a última geração da aristocracia francesa, que acabaria com a Primeira Guerra Mundial, com as mesmas admiração e verve cáustica de Proust. Não usou nenhum cacoete fílmico. Preferiu ser original, bem escudado que estava com os cenários, vestuários e o estupendo fotógrafo – curiosamente bastante discreto, como sempre; Nykvist jamais mexia a câmera a não ser que fosse necessário. 

Ao fim, tem-se a impressão de um trabalho sólido, bem fundamentado, exigente, sem concessões ao fácil ou a didatismos desnecessários. Não é pouco, ainda mais em se tratando de um livro tão estudado, tão lido e admirado. Em 2001, o chileno radicado na França Raul Ruiz adaptaria o último volume, O Tempo Redescoberto, com resultados mais modestos, mas não menos interessantes, pois Emanuelle Béart estava impressionante como Albertine e John Malkovich encarnou de maneira formidável o barão de Charlus. Dá para comparar as interpretações de Malkovich e Alain Delon para o mesmo personagem – tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais. 

Em Busca do Tempo Perdido deveria ir mais vezes ao cinema.

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