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Críticas

Cineplayers

Os filmes de Sundance e sua estética versus Amores Inversos.

6,0

Um dia Pablo Picaso disse, referindo-se a Van Gogh, que “quando ninguém mais sabia para onde ir, ele mostrou o caminho”. A arte encabeçada por Van Gogh descarrilhou o vagão da modernidade no mundo da arte, mais ou menos da mesma forma que diversos movimentos e utopias geraram uma série de novas possibilidades no cinema. O som, a era dos estúdios, o stardom, a depressão, as nouvelles vagues... tudo isso se torna, hoje, página da história, da bagagem cultural e estética do cinema.  As possibilidades que se abrem hoje parecem ser infinitas, mas a própria indefinição é capaz de engessar as ideias. Sabemos, por exemplo, que o cinema de hollywood vive uma crise criativa profunda há pelo menos dez anos, se não vinte ou trinta, e não há perspectivas animadoras no cinema de primeiro plano americano.

Mas algumas propostas se definem e se consolidam cada vez mais. Uma delas é a de filmes como Amores Inversos: chamamos de cinema independente americano, muito embora estejam longe disso. São filmes de baixo orçamento, é verdade, com diretores relativamente inexperientes, mas financiados por subdivisões dos grandes estúdios principalmente para exibição em festivais ao redor do mundo – o mais emblemático, o festival de Sundance.

Mais recentemente, os filmes mais notórios de Sundance (isto é, aqueles que são mais distribuídos ao redor do mundo) guardam diversas semelhanças entre si, a ponto que, pouco a pouco, a estética de Sundance poderá se tornar linguagem própria, carregada de seus vícios e/ou linguagens.

Ao assistir Amores Inversos, motivado principalmente pela presença inesperada de Kristen Wigg (famosa por participar com louvores do Saturday Night Live), imediatamente me vieram três filmes na cabeça. Três filmes que podem ter feito parte ou não do festival, mas que flertam semelhantemente com certas peculiaridades: A Outra Terra, de Mike Cahill, 2011; Juventude em Fúria, de Spencer Susser, 2010; e Inverno da Alma, de Debra Gernik, 2010. Também poderia citar aqui Martha Marcy May Marlene, de Sean Durkin, 2011 e Inquietos, de Gus Van Sant, também de 2011. São todos filmes desse circuito semi-independente; a mulher é protagonista ou desempenha um papel de forte conjuntura na história; a figura materna é ausente ou completamente inexistente; existe uma figura paterna, literal ou não, de muita reverberação na/no protagonista; a linguagem é, sei lá, poética?, talvez, ou então apenas um pouco fantástica ou simbólica, ao mesmo tempo em que há um forte apelo ao naturalismo; filma-se de maneira similar, sem truques, sem grandes ambições – a câmera é intermediário da história, não interfere; usa-se o som de maneira similar – quando não diegético, é pontual, pouco invasivo; existe uma certa supressão do primeiro ato – e com isso quero dizer o primeiro ato padrão, no sentido de introdução. Quando existe, ele normalmente não passa dos créditos iniciais, e logo a história já te joga para os personagens e as situações; são certamente filmes de personagem, character-driven, onde o protagonista tem de lidar durante o filme com um evento traumático anterior à trama, e quase sempre com o auxílio de uma figura recém-conhecida.

Enfim, canso-me agora de enumerar, e naturalmente essa lista tanto se estenderia um pouco mais, quanto também faz referência não apenas aos filmes citados, mas a vários outros, de forma que, sendo uma lista de aspectos objetivos e não circunstanciais, definem que existe uma clara linguagem formatada, e isso existe certamente há pouco tempo.

Os paradoxismos desse tipo de filme são especialmente interessantes de serem observados. Ao mesmo tempo que se transvestem de independentes, seus elencos possuem nomes de peso; ao mesmo tempo em que são naturalistas, também flertam com o fantástico; ao mesmo tempo em que se comprometem a falar sobre mulheres (e serem, nesse sentido, pró-feministas), o fazem relacionando a figura feminina a uma presença masculina muito potente.

Os paradoxismos e a pré-formatação sugerem que esses filmes baseiam-se num conceito frágil, em ideológicas tremules e em ideias de cinema inseguras, provável reflexo da inexperiência dos cabeças desses projetos, diretores e roteiristas que podem não estar totalmente formados ou que podem não ter nome o suficiente pra impor suas ideias acima daquelas de quem paga.

Um outro ponto a ser considerado nessa análise é que em todos esses filmes pretendem trabalhar com o drama de pessoas fundamentalmente reais, comuns; seus rostos não são os de pessoas grandiosas e seus romances não são sublimes histórias de amor; também não é o cinema de guerrilha, do oprimido, do marginalizado. A grande qualidade dessas histórias é que elas parecem querer registrar com profundo interesse o drama de alguém que é tão comum, tão parecido com todo mundo (incluindo nós mesmos), que não importa de verdade pra ninguém.

Sobre Amores Inversos, o filme segue tipicamente essa linha de pocket dramas de festival ao contar a história de Joanna, uma mulher particular, travada, que aceita um emprego de governanta na casa de um senhor e sua neta após o falecimento da idosa que cuidava em sua cidade natal.

O elenco é repleto de estrelas decadentes, mas potentes, como Jennifer Jason Leigh, Guy Pierce e Nick Nolte (um dos grandes atores de sempre), mas como destaque há de se realçar a presença de Kristen Wigg, uma atriz notoriamente cômica, mas que se agarra a esse papel dramático com perseverança, construindo Joanna com altas doses de frigidez, complacência, doçura.

Em seu desenvolver, o filme assume explicitamente o caráter de romance, ao se constituir de três histórias paralelas de envolvimento emocional – Johanna e Ken (Guy Pierce); Mr. McCauley (Nick Nolte) e Chloe (Jennifer Jason Leigh); e Sabitha (Hailee Steinfeld), Edith (Sami Gayle) e Stevie.

A história de amor entre Johanna e Ken é certamente a mais preponderante, se inicia através de um desencontro, um engano, e se constrói de lentamente na medida em que ambos se dão conta de sua solidão e de sua necessidade ao outro; eles criam, juntos, uma relação fundada em culpa, remorso e carência.

A história de amor entre Mr. McCauley e Chloe é extremamente superficial; não faz jus à presença marcante de Jennifer Jason Leigh. Estes não são personagens, são meras faces, que ocupam espaço, mas que não se justificam em momento algum.

O que ocorre entre Sabitha e Edith, porém, é um pouco mais interessante. Esse arco do filme também é bastante raso, mas as nuances fazem valer um pouco mais a pena. Por conta de um desentendimento, Edith rouba a paquera da amiga, obrigando Sabitha a se confrontar com o seu incômodo real – a relação com seu pai. Através desse confronto, a garota muda radicalmente sua atitude, tornando-se mais afetiva e decidida.

Em uma das cenas, já mais próximo do final, Sabitha e Johanna estão tirando o carpete velho de um dos quartos do hotel de Ken; a postura corporal das duas mulheres me trouxe imediatamente à memória o quadro The Floor Scrapers, de 1875, do pintor impressionista francês Gustave Caillebotte. A obra de Caillebotte é pautada no mundano e no real, se impõe junto com a obra de outros impressionistas a retratar o mundo de pessoais reais, sem as verticalizações ególatras do mundo da arte europeia da época. Esse esforço por retratar pessoas em suas vidas e traumas cotidianos é notado nesses pocket dramas semi-independentes. Algumas vezes, o esforço resulta em um trabalho de suma qualidade, como Inverno da Alma e Martha Marcy May Marlene; no caso de Amores Inversos, a maioria dos tratamentos é superficial e esvaziada, o drama é progride através das circunstancias, e não das ações das pessoas reais que pretende retratar. Se Caillebotte pinta seus estivadores como deuses, em Amores Inversos os personagens não possuem profundidade suficiente para serem sequer pessoas.

Comentários (1)

Araquem da Rocha | quinta-feira, 30 de Outubro de 2014 - 21:27

Concordo com o guilherme. O cinema americano vive crise criativa ha muitos anos.Spilberg e George lucas falaram ha pouco tempo sobre isto.De que a formula de holywood fazer seus blockbusters, vai implodir uma hora.Hoje,todo mundo sabe,o que impera sao;os remakes,reboots,Continuacoes,Adaptacoes,super herois....Eu,hoje,como cinefilo,vejo pouquissimos filmes blockbuster que sejam acima da media e que me agrade.

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