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Críticas

Cineplayers

Andando em família.

8,0

Desde pelo menos 2004, Hirokazu Koreeda parece interessado em investigar conceitos de família nos mais diversos cenários. Em Ninguém Pode Saber (Dare mo shiranai, 2004), a família constitui-se de quatro crianças, todas menores de doze anos, totalmente incapazes de tomarem responsabilidades de si mesmas, mas sendo obrigadas a fazê-lo; em O que Mais Desejo (2011), a família é na verdade duas, marcadas pela separação trágica de dois irmãos após o divórcio dos pais – o mais novo foi morar com o pai e o mais velho com a mãe e os avós; em Pais e Filhos (Soshite Chichi Ni Naru, 2013), a família é inquietada pela revelação de que o filho fora trocado na maternidade.

Em Andando (Aruitemo aruitemo, 2008) há pelo menos três núcleos familiares que se chocam durante a ação do filme que percorre um período de um dia e meio de visita à casa dos patriarcas. Os Kataokas são a família da filha, Chinami, seu esposo Nobuo e seus dois filhos, Mutsu e Satsuki. Os Yokoyama são a família do filho, Ryota, sua esposa, a viúva Yukari e o filho dela, Atsushi. Os patriarcas são Toshiko, uma mulher prendada na cozinha e dada a falar demais, e Kyohei, um homem reservado e muito ríspido.

O filme é pautado por um evento traumático, anterior à narrativa: muitos anos antes, o primogênito Junpei afogou-se no oceano após tentar, com sucesso, salvar a vida de um jovem prestes a se afogar. Todos os anos, então, a família reúne-se na casa dos patriarcas no aniversário de morte de Junpei para prestar as devidas homenagens.

Há um evidente rancor permeando todas as ações da história, e Koreeda faz questão de deixar em evidência essa perturbação no ambiente. Como se houvesse algo de podre por debaixo de um tapete, cujo cheiro estivesse se tornando cada vez mais insuportável. Ryota e Chinami são irritadiços e fragilizados, um mero comentário dos pais é capaz de fazê-los perder a compostura. Para os irmãos, há tradição de se reunir para relembrar a morte do irmão é um ritual sádico e dispensável, comparecem apenas por obrigação.

Os companheiros dos irmãos, Nobuo Kataoka e Yukari Yokoyama, naturalmente percebem o incomodo de seus parceiros e entendem o compromisso firmado com seus patriarcas, fazendo de tudo para tornarem o dia mais divertido e agradável quanto possível. A única alegria da casa vem do barulho das crianças Kataokas correndo para todos os lados, gritando e falando muito. Atsushi está tímido pois visita a casa dos avós-drastos pela primeira vez.

Ademais, o incômodo é recíproco. Kyohei, o patriarca, passa a maior parte do tempo trancado em seu escritório, alimentando a ilusão de ainda ser um médico, apesar de ser compulsoriamente aposentado por problemas de saúde. Toshiko, a matriarca, é o maestro que rege a visita dos filhos: faz os aperitivos, o almoço, arruma a mesa antes e depois das refeições, decide quando visitar o túmulo de Junpei e etc. Kyohei e Toshiko, de maneira fria e um tanto calculista, cuidam para alfinetar sempre que julgam adequado as escolhas, posições e vidas de seus dois filhos e também de suas respectivas famílias.

Essas alfinetadas, se parecem a princípio inofensivas, transfiguram-se através do acúmulo em um grande espetáculo sadista por parte do velho casal. Eles não possuem o menor interesse em esconder suas reprovações com os filhos, sejam elas quais forem. Para Ryoto e Chinami, visitar a casa dos pais é como entrar num ringue de boxe com mãos atadas. É passar horas e horas sofrendo os mais compenetrantes golpes, sem poder retrucar, ou por respeito ou por piedade aos provedores.

Um dos alvos do casal patriarca é Yukari. Ambos desaprovam a escolha de Ryota por casar-se com uma mulher viúva, já mãe. Dentre as diversas vezes que o assunto veio à tona, algumas das palavras proferidas foram “mulher usada”, “você eventualmente vai querer formar uma família de verdade”, “mulheres divorciadas são melhores que as viúvas, pelo menos elas quiseram se separar”.

Porém, a intenção de Koreeda não é em vilanizar o velho casal. Todos os retratos familiares do diretor japonês anteriores e posteriores geraram dramaturgias complexas e extremamente humanas. Em nenhum dos quatro filmes citados há o menor flerte com algum tipo de culpabilização. Koreeda, acima de tudo, ama todos os seus personagens, tridimensionalizando-os. Kyohei e Toshiko são personagens fortes. Possuem muito rancor, mas dão mostras de bons sentimentos, quando a narrativa permite-os.

Andando é um filme sobre pessoas que se relacionam através de espaços específicos. Há um grande fantasma pairando sobre o filme, mas fora isso, toda a emoção transborda pelos valores inter-relacionais dos personagens, e não da narrativa em si. Algo que mais se aproxima de um clímax aqui é todo um conjunto de cenas que acontecem desde os preparativos para o jantar até o apagar das luzes do primeiro dia.

Dentre os momentos que precedem ao jantar, temos: Toshiko praticamente obriga Ryota e tomar banho junto com Atsushi. Pai e filho tomando banho juntos na banheira aparentemente é um ritual comum no Japão. A implicação simbólica disso claramente é que Toshiko força uma aproximação mais íntima entre criança e padrasto; porém, pouco tempo depois, ela diz para Yukari que seria melhor ela não engravidar de Ryota, porque as coisas seriam complicadas demais para Atsushi, claramente indicando que a constituição de família que Yukari e Ryota possuem é pouco natural.

Koreeda faz seus personagens transitarem entre a sabedoria e o desprezo, entre a compreenção e a tristeza, convergindo-os a uma mesa de jantar, onde Yukari puxa conversa com Kyohei, mesmo que o senhor tenha uma hesitação inicial. Enquanto Yukari se aproxima de seus sogros, Toshiko fala para o filho de uma canção a qual a remete aos tempos de juventude, quando ela e Kyohei ainda eram um jovem casal apaixonado. Mais tarde, Yukari confessa para Ryota que também possui uma canção com seu falecido marido, a qual também escuta sempre que pode, afim de rememorar.

Se esse texto ficou deveras descritivo é apenas porque eu senti que precisava contar todos esses detalhes pra tentar entender o que exatamente havia me cativado no filme, para então expressar esse motivo. O que eu consigo tirar em termos de história e personagens é que toda a tese de Koreeda em Andando diz respeito à ciclos frágeis e mutáveis, que sempre se reconfiguram em outras coisas, transformando-se ao longo do tempo de acordo com as escolhas e caminhos de feitos e percorridos por casa um de seus personagens.

Esses ciclos são a vida de seus personagens, sua existência enquanto pessoas dentro de uma narrativa. Tudo isso serve para a ideia de que a interpretação dos mais diversos fatos da narrativa para cada personagem acontece de maneira distinta, e a partir dessa interpretação, cada personagem se portará de maneira própria a cada um dos mais diversos fatos. O mais marcante dos fatos certamente é a morte prematura de Juntei. É um fato pré-narrativo, mas as consequências são claramente expressas durante toda a história.

Ryota ressente Juntei, porque os seus pais nunca o trataram com o carinho e admiração que dedicavam ao irmão; Chinami não consegue aproximar-se de seus pais, que a tratam como indesejável; Toshiko e Kyohei se alienaram da família, vivem isolados numa pequena cidade e, ano após ano, executam o mesmo ritual sádico para poder suportar a dor de terem enterrado o filho mais querido.

Independente disso, o ciclo de cada um dos personagens parece ser o de afastarem-se do leito familiar, buscando lidar com a tragédia como todos lidamos: construindo vidas próprias. Mas existem momentos suficientes no filme que denotam que inevitavelmente, o ciclo de cada um reconvergirá para o leito familiar novamente, porque a origem e a tradição e a família são simplesmente potentes demais na vida do Homem para que Ele possa escapar disso.

O título Andando faz referência à canção que Toshiko escuta para se lembrar da juventude, mas também evoca ao ritual que a família tem de caminhar pelos arredores da casa dos patriarcas todos os anos, e depois caminhar até o túmulo de Juntei para prestar homenagens, e depois caminhar de volta à casa. Também evoca, evidentemente, às caminhadas mais simbólicas: a das crianças crescendo e tornando-se adultos com vidas próprias, e também à caminhada que todos fazemos durante nossa vida, através dos anos, até o fim.

O filme de Koreeda perpassa por todas essas ideias para dizer que embora a caminhada de cada um seja individual, tortuosa e esburacada à própria maneira, fatalmente estamos fadados a intervir nos caminhos uns dos outros, deixando marcas indeléveis, perpetuadas de geração em geração. Andando é um filme sobre viver em família, na distância e no amargor, sim, mas principalmente no afeto.

Comentários (2)

João Guilherme | segunda-feira, 25 de Janeiro de 2016 - 01:52

Muito boa crítica, Guilherme!
Acho esse filme maravilhoso (como tudo do Koreeda), pena que não é tão conhecido.

Augusto Barbosa | quinta-feira, 17 de Maio de 2018 - 17:33

Excelente texto para um grande filme mesmo, especialmente o último parágrafo, sintético, mas muito preciso. Calha a ser meu Koreeda favorito, dos que vi até agora.

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