Saltar para o conteúdo

Anjo Exterminador, O

(Ángel Exterminador, El, 1962)
8,5
Média
425 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

A prisão moral burguesa

9,0

Em uma história pitoresca que entrou para os anais da história do cinema, conta-se que após a exibição do primeiro corte de O Anjo Exterminador, o diretor de fotografia Gabriel Figueroa, que trabalhou com John Ford em Domínio dos Bárbaros (1947) e com John Huston em A Noite do Iguana (1964), abordou alarmado o diretor espanhol Luís Buñuel, com quem trabalhava pela segunda vez após o drama social Os Esquecidos (1950) e apontou que o filme continha em vários momentos repetições de cenas. O lendário diretor de O Cão Andaluz, que ao lado de Salvador Dalí inaugurou o movimento surrealista no cinema, respondeu que era assim mesmo. Era uma escolha criativa, e ele detinha o corte final de seus filmes. E um frustrado Figueroa permaneceu cético.

Olhando à luz da história, tentando entender Buñuel, a impressão que temos em O Anjo Exterminador, filme sobre um grupo de burgueses da alta roda que vê-se incapaz de sair da sala de estar após a confraternização, é que o filme é, desde o início, sobre uma prisão social; a prisão fantástica e absurdista é apenas o ponto de culminância dessa ideia inicial. Em uma das primeiras cenas, as domésticas fogem dos olhos de seus patrões. Minutos depois, o mesmo acontece em outro andar. O raccord (montagem de continuidade visual) que Buñuel cria através da repetição cria uma impressão circular de que o próximo movimento pode ser o mesmo.

E, de certa maneira, é o que acontece. Muito antes de filmes alegóricos muito comentados nos últimos tempos, Buñuel leva a ferro e fogo de repetir sempre a mesma ideia de maneira estilística, apenas brincando com a variação de intensidade. Se no início as pessoas tem comportamentos insidiosos pelas costas uma das outras durante o jantar - com o diretor filmando sem início, meio ou fim, criando um clima de estranheza, de crueldade repetitiva - no segundo ato temos um espetáculo grotesco, onde o anfitrião que tenta segurar o último bastião de civilidade é insistentemente insultado e atacado.

Curiosamente, à moda como faria de forma mais cômica e grotesca doze anos depois em O Fantasma da Liberdade (1974), na clássica cena em que as pessoas comem solitárias mas fazem suas necessidade em grupo, o conflito é à luz de todos; as carícias de dois amantes, porém, é filmada à parte, no único closet disponível na sala. A burguesia censura o desejo dos infiéis, mas a inquisição acusatória de quem seria o culpado daquela situação sem sentido torna-se logo um microcosmo social. Quando a civilidade voa pela janela, importa menos sair dali (algo que só a conclusão do filme retoma) e mais punir quem os colocou naquela situação.

Quanto à origem do nome, é dito que Buñuel tirou o título de seu clássico de uma ópera nunca terminada seu amigo José Bergamin, que aceitou o "plágio" porque o mesmo havia tirado da Bíblia, no livro do Apocalipse, Capítulo 9; o livro faz referência à Abadom, anjo rei de um abismo infinito e de um exército de gafanhotos que pune os homens sem a marca de Deus; ou então pode referir-se à Samael, o anjo da morte ou "A Ira de Deus". Apesar de não sabermos a origem exata do nome, podemos datar que é um conceito antigo, enquanto a personificação da punição; se intérpretes da Bíblia imaginam o "anjo exterminador" como alguém ou um lugar, Buñuel imagina como uma situação que acontece, não por acaso, com cruéis burgueses do México.

Buñuel estava em segundo trabalho com o Gustavo Alatriste (que admitira mais tarde ser o produtor que mais lhe deu liberdade criativa) e com sua esposa, Silvia Pinal, que começou a colaborar com o diretor em Viridiana, um filme sobre uma noviça pia que sofre o pão que o diabo amassou na mão do tio, um homem abusivo e perverso que se torna obcecado por ela e, após isso, nas mãos de desvalidos que tenta educar, mas que se mostram irredimíveis em seus vícios. A trilogia seria fechada com Simão do Deserto, a versão buñueliana da história do asceta do Império Bizantino que ficou até morrer vivendo em cima de um pilar de pedra, com o fanatismo ridicularizado sem dó.

O surrealismo tem em seu cerne influências psicanalíticas, surgindo como manifestação do inconsciente através da arte. Buñuel, em contraste com outros, mostraria preocupações acentuadamente políticas em suas obras, e não apenas individuais; grande parte dos seus filmes se voltariam sobre o absurdo cotidiano, ou seja, as disrupções ocorrendo a partir  de contextos sociais comum. Exemplos não faltam, mas podemos destacar outro posterior, A Bela da Tarde, onde miserável com a rica vida burguesa, uma dona de casa resolve tornar-se prostituta. Através de um cinema de reiterações e repetições, Buñuel puxava o tapete narrativo sob o qual erigiu o status quo do século XX.

O Anjo Exterminador se erige como um dos exemplares mais icônicos da sua filmografia após Um Cão Andaluz justamente por conta disso; o diretor afinou a abordagem absurda com a temática social e, com isso, "destrói" a burguesia. Roger Ebert teorizou que seria uma espécie de ataque à Espanha franquista, onde após tomar a Espanha para si, a classe dominante "senta-se para um banquete, apenas para descobrir que ele não tem fim. Estão presos na sua própria rua sem saída burguesa. Cada vez mais ressentidos de estarem isolados do mundo, ficam cada vez mais cruéis e suas piores tendências são reveladas".

Não é o primeiro problema que Buñuel teve com a Espanha de Franco (Viridiana foi produzido no país, ganhou a Palma de Ouro em Cannes e então foi proibido após o escândalo), e O Anjo Exterminador carrega em certo nível esse ressentimento com o governo autoritário do ditador. À época, Franco tornava-se mais popular por conta do crescimento econômico, mas também acirrou a repressão cultural e a perseguição política. O "Generalíssimo", admirado pelo chileno Augusto Pinochet, apoiou o nazismo contra o socialismo com sua Divisão Azul e após isso aliou-se aos EUA e abriu a economia, criando uma classe média que, até o referendo que restauraria a democracia, era acostumada a sofrer calada (vide o clássico Cria Cuervos) - com a garantia de soberania e dinheiro, não vinha o direito à expressão e expressão cultural. Ou seja, como Ebert disse, após alcançar o poder, não há saída para o poder - a não ser o colapso do mesmo.

A marca do niilismo - ou falta de perspectivas - como ponto final, onde o diretor abusa de uma técnica de atores parados enquanto a câmera desliza (uma espécie de freeze frame in loco) mostra que a quebra da prisão física não destrói a prisão mental, pois essa é criada por nós (Aldous Huxley, autor de Admirável Mundo Novo, profetizava uma distopia terrível: a da prisão perfeita, com prisioneiros que amam suas grades). As pessoas querem sair para voltar aos seus ritos de modos cordiais frontais e ataques cruéis à retarguada, não superá-los. Muitos dos melhores filmes de terror dos próximos anos (de O Bebê de Rosemary à O Despertar dos Mortos e até o recente brasileiro Trabalhar Cansa), de uma nascente geração contracultural, se usariam dessa lógica de não haver continuidade pós-horror e pós-absurdo. O antes não é possível de ser restaurado, pois nossa ambição predatória pelo status quo é incapaz de sublimar, transcender - apenas decair. E como o personagem do anfitrião ou Simão do Deserto parecem apontar, qualquer elevação individual parece apenas egoísta e vaidosa.

Essa época de Buñuel, se menos imersa na experimentação extremista da louca época de Um Cão Andaluz, A Idade do Ouro, Entreato, À Propósito de Nice, O Sangue de Um Poeta entre outros filmes de uma geração que marcaram uma transgressão sem igual na forma cinematográfica, mostra o lugar de uma farsa absurdista na manifestação do inconsciente coletivo de uma geração de adultos perdida no confuso zeitgeist da Guerra Fria e do mundo rachado. Esse desespero calado eclodindo em animalismo primal caiu como uma luva e o impacto questionador e cáustico, é claro, não poderia ser outro; um dos filmes essenciais para entender o diretor e seu cinema, que mesmo no esquema dos estúdios, continuou a praticar de forma inigualável sua estilística provocativa - se um tanto mais sutil formalmente, com uma temática cada vez mais ousada dessa vez. Se todos estamos presos, que vejamos as grades da prisão.

Texto integrante do especial Baú dos Clássicos

Comentários (2)

Igor Guimarães Vasconcellos | segunda-feira, 20 de Julho de 2020 - 09:01

Muito boa a tua profundização na relação com a História do próprio país e adentro das próprias narrativas que formam parte da Espanha.
O Buñuel conhecia a classe média nostálgica da colonização com a palma das mãos.
Grande filme e bela crítica, parceiro!

Silvia Lima | segunda-feira, 30 de Janeiro de 2023 - 11:27

Análise notável. Obrigada por isso.

Faça login para comentar.