Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Tentativa de se fazer cinema intelectual não é mais do que um disfarce para criar um soft pornô dos mais vagabundos.

1,0

A polêmica começou em 1999, quando a diretora francesa Catherine Breillat convidou o ator pornô italiano Rocco Siffred para estrelar seu filme Romance. Nas cenas de sexo entre ele e a atriz principal, Breillat não se intimidou e mostrou o enorme pênis do cidadão (26 cm). Ao ser acusada de pornografia, ela se defendeu: pornografia por quê? Segundo ela, com a internet e a liberação dos tempos, o conceito de pornografia acabou. “Pornografia está nos olhos de quem a vê”, arrematou, acrescentando que ninguém vê nada demais em homens fazerem sexo com prostitutas, enquanto as mulheres que tomam a mesma atitude são logo consideradas umas devassas.

De lá para cá, vários filmes testaram esse limite entre o que seria “arte” e a velha pornografia. No Festival de Cannes de 2000, o sul-coreano Mentiras trazia uma hora e meia de sexo masoquista entre um professor e sua aluna adolescente, a ponto de a selvageria levá-los à beira da morte, com ela batendo nele com um cabo de machado (“não deixa muitas manchas”) e ele comendo-lhe as fezes (por esse ato, ela se apaixona por ele).

Pois eis que chega (como os dois acima citados) às telas do circuito de arte de São Paulo, por meio da distribuidora independente Focus Filmes, mais um exemplar dessa leva de filmes em que é impossível dizer se seria “cinema” ou “pornô”: Anjos Exterminadores. A diferença deste filme francês e dos de putaria é que as luzes estão corretas, os enquadramentos são relativamente bem feitos, cortes e edição, som e fotografia são mesmo de um filme “convencional”, além da película de cinema. Mas o resultado é tão enfadonho e constrangedor quanto um filme pornográfico.

Conta a vagabunda e surrada história de um cineasta que, pesquisando sobre o desejo feminino, escolhe três atrizes lindíssimas e faz com elas vários testes e jogos eróticos, pretendendo ir “fundo na alma das mulheres” e, se possível, descobrir por que o sexo envolve tanta hipocrisia e violência.

As personagens que embalam o filme são uma esquizofrênica que pensa receber vez ou outra o diabo no corpo (tanto que quebrou o apartamento inteiro), uma mentirosa compulsiva, que termina se apaixonando (de verdade) pela endemoniada, e uma frágil e sensível loira, que fica caidinha pelo diretor. Juntas vão testar os limites do erotismo feminino e pesquisar como aflora o desejo de uma mulher com outra, uma vez que a parceira “conhece meu corpo melhor que um homem”.

Enfim, uma pornochanchada infame, que, se passasse de madrugada nos canais de TV a cabo, seria considerado apenas mais um pornô soft.

Não há os chamados “closes ginecológicos”, mas cada uma das atrizes se masturba ou é levada ao orgasmo olhando para a câmera pelo menos três vezes. Elas fazem sexo a três, em pé, na cama, nas dobradiças das portas (para melhor aproveitar a luz), com todo, hã, aparato permanecendo em cena aberta. O cineasta personagem do filme gravava tudo e, à noite, mostrava para a esposa, que considerava aquilo tudo uma deslavada e descarada traição.

Misturado a essa trama, há outra pior ainda. Os tais anjos exterminadores do título saem das profundezas do inferno (são anjos caídos) para desgraçar a vida do diretor-personagem. São mulheres, vestidas de jeans e regata preta, que planejam uma terrível vingança contra o cineasta, que em tese estaria revelando aos humanos o lado tenebroso da alma e, por algum motivo, deveria ser punido.

Ah, e ainda tem a avó do cineasta, que volta também do além para ajudar no qüiproquó – as referências aos filmes B estão por toda parte, em especial nos cartazes de bombas cult como A Noiva do Frankstein, nos cenários.

A história é baseada num fato real: quatro atrizes que fizeram testes para o filme anterior de do diretor Brisseau, Coisas Secretas (2002), o processaram por assédio sexual e coerção psicológica – foi sentenciado a um ano de prisão, multa de € 9,5 mil e indenização de outros € 17 mil. Ou seja, o universo extravagante, de sublime e ridículo caminhando juntos de forma rocambolesca, vazou para a vida real – ele também dirigiu os polêmicos Boda Branca (1989) e Anjo Negro (1994).

Na década de 1960, o artista plástico Marcel Duchamp enviou a uma exposição de arte um urinol, desses usados pelos homens para urinarem em pé. A intenção do artista era mostrar que qualquer objeto poderia ser uma obra de arte, desde que estivesse num museu e as pessoas concluíssem que aquilo era uma obra de arte. Com isso, Duchamp tentou desmitificar o mecanismo da arte contemporânea de dar arbitrariamente significado artístico a determinados objetos, sem muita lógica. “Destruam os museus”, pregava.

Da mesma forma que colocar um urinol no museu não faz dele uma obra artística, exibir um filme no cinema não faz da obra um filme. Muito menos exibi-lo no circuito chamado de “arte”, para conferir às aberrações ali mostradas um caráter pseudo-intelectual (fato até relativamente comum). Anjos Exterminadores é, no máximo, um filme pornô light que, de tão bem feito tecnicamente, foi exibido no cinema. Sua indigência artística é o oposto de sua pretensão, o torna tudo não só uma tremenda perda de tempo com uma imensa bobagem.

Comentários (1)

Faça login para comentar.