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Críticas

Cineplayers

A Ditadura Militar sob um olhar infantil e muito bem filmado.

8,0

Qualquer filme implica uma visão particular de um recorte do mundo. No cinema, assim como em qualquer outra área, é impossível se abarcar a totalidade de um suposto real. Por mais que se queira abordar um tema amplo, é necessário um foco, um olhar direcionado. Isso é básico. O que pode fazer a diferença, no entanto, é qual será essa lente, esse olho. O receptor dessa realidade pode revelar faces até então escondidas ou ignoradas. Seja envolto em uma série de comportamentos e prerrogativas sociais, seja em um drama familiar, em um episódio histórico ou em qualquer outro palco de ação, o impacto sobre o receptor, sobre o humano é que dará a tônica do filme.

O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias tem seu maior acerto justamente na escolha desse receptor. Ambientado na ditadura militar, período da história nacional mais revisitado pelo nosso cinema, seu diferencial está no olhar infantil sobre os fatos. Esse olho do protagonista, ao mesmo tempo inocente e ávido por compreender a confusão a sua volta, consegue criar momentos líricos em meio a um cenário sombrio e também potencializa esse cenário, já que suas conseqüências sobre uma criança soam sempre mais terríveis. Só para citar um exemplo recente, O Labirinto do Fauno do mexicano Guillermo del Toro é magistral ao tentar reproduzir o impacto da barbárie (no caso da Guerra Civil Espanhola) sobre o universo infantil.

O filme se passa, mais precisamente, no ano de 1970, lembrado como o ano em que a seleção brasileira de futebol conseguiu o tricampeonato, mas que foi também um dos períodos mais repressivos da ditadura, sob o comando, naquele momento, do General Emílio Garrastazu Médici. O protagonista é o garoto Mauro (Michel Joelsas), apaixonado por futebol, que é levado às pressas de Belo Horizonte para São Paulo. Seus pais, fugindo dos militares, o deixam na porta do prédio onde mora seu avô. O inusitado é que seu avô morre instantes antes da sua chegada. Sozinho, Mauro acaba ficando sob os cuidados do velho judeu Shlomo (Germano Haiut), vizinho de seu avô.

Mais que um filme histórico, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias é um filme intimista, voltado mais para sua personagem que para o mundo em volta. Claro, os horrores da ditadura estão ali, mas o que interessa nesse caso é como Mauro é afetado por esse turbilhão de mudanças, perdas e novidades. É um processo de descobertas e amadurecimento aos trancos. E é por retratar tão bem e tão singelamente esses impactos que o filme funciona. Singelo aliás é um bom adjetivo para o filme: Cao Hamburger (Castelo Rá-Tim-Bum – O Filme) conduz a narrativa de modo suave, sem arroubos, sem forçar a mão na dramaticidade.

O filme toma corpo a partir do relacionamento entre Mauro e Shlomo, uma criança e um velho solitário respectivamente. A resistência inicial é tratada de maneira verdadeira, pois passa longe de estereótipos. Mauro não é aquela criança sempre afável e engraçadinha. Pelo contrário, ele chora, se revolta, estranha. Shlomo também não é o vovô bondoso: acostumado a sua solidão e algumas vezes ranzinza, ele reluta em dividir o seu espaço com aquele pequeno gói (não-judeu) intruso, mesmo que sua consciência lhe diga que seu dever é cuidar do menino. Sem exageros, o filme promove no momento certo a conciliação entre esse dois estranhos, não ferindo o tempo que cada um necessita para se acostumar com a presença do outro. Algumas das melhores cenas do filme envolvem a dinâmica entre esses dois personagens – a cena do café da manhã mostra o choque das diferenças e, quando Mauro resolve trancafiar-se sozinho no apartamento do avô, uma tomada emblemática mostra o distanciamento de ambos.

Porém, assim como O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias extrapola o pano histórico, extrapola também a relação entre Mauro e Shlomo e mergulha de cabeça no universo infantil, pontuando no roteiro diversos momentos de alegria e nonsense. Mesmo num contexto tão árido, Mauro, como qualquer outra criança, consegue desligar-se da face apenas negativa do mundo e descobrir momentos felizes. Seus almoços, cada dia na casa de uma família exemplificam essa predisposição pra aproveitar o que mínimo de bom se apresenta. Sua amizade com Hanna (Daniela Piepszyk), suas brincadeiras, seu interesse inocente por uma moça mais velha e principalmente, seu amor ao futebol, funcionam como escape à ausência dos pais e ao estranhamento da nova vida e dão leveza ao drama. O futebol é ainda um elemento metafórico que confere ligação entre a admiração de Mauro pela figura de goleiro, que vive de segurar boladas inesperadas, com seu amadurecimento forçado pelas mudanças e novidades repentinas.

Se o roteiro é hábil ao mesclar todos esses eixos narrativos, a direção de Cao Hamburger é igualmente hábil ao transportá-los para a tela.  Contando com recursos técnicos de primeira, O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias tem fotografia e enquadramentos caprichados (com uso constante de reflexos), uma boa sonorização e iluminação e produção de arte fiel que denotam um trabalho cuidadoso. O ritmo que Cao impõe às cenas acompanha os vários momentos de Mauro. As cenas iniciais em que o garoto se sente mais só e as cenas com Shlomo são lentas e silenciosas (se não há o silêncio absoluto, há tristes acordes retirados de músicas judaicas). Quando Mauro começa a se misturar ao novo lar, a música fica mais alegre e agitada e, junto com a edição, que faz uso de seqüências clipadas, dá agilidade e fluidez à narrativa – mas como já disse, sem estourar demais. E o futebol, novamente atua como elemento de conexão, contrapondo-se a ditadura, que apartava.

O elenco se mostra em compasso com o tom adotado pela direção. O estreante Michel Joelsas foi muito bem treinado e está natural em cena, sem os traços precoces que costumam tornar irritantes algumas atuações infantis. O também desconhecido Germano Haiut se sai bem sob a carranca um tanto fajuta de Shlomo. Nomes mais conhecidos como Simome Spoladores, Caio Blat e Paulo Autran, além de serem um chamariz para o público, cumprem com igual competência seus papéis.

O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias talvez não seja um filme muito original e pode ser que lhe falte certa emoção – sua história, tratada de modo mais melodramático, renderia muito mais lágrimas. Porém, o objetivo aqui não é esse. O objetivo é contar, singelamente, como o olhar de uma criança pode revelar muito mais que o que a princípio vem à tona. Qualquer situação, por mais dura que possa se apresentar, terá no futuro sua dose de vantagem. Pode parecer clichê, mas tudo acaba tendo um lado bom. Depende de com que olhos se vê e com que predisposição se encara. É, em suma, uma história de amadurecimento no seu mais completo sentido.

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