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Anora

(Anora, 2024)
7,5
Média
65 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

À margem do sonho

8,0

Os protagonistas dos filmes de Sean Baker têm algo em comum: eles rodeiam o sonho, estão sempre à margem dele, olhando a vitrine do lado de fora. Seja as garotas de programa transexuais de Tangerina (Tangerine, 2015), seja o ex-astro de filmes adultos em Red Rocket (idem, 2021), seja a garotinha filha de mãe solo que vive nos motéis baratos que rodeiam os parques da Disney em Projeto Flórida (The Florida Project, 2017), todos parecem ao mesmo tão longe e tão perto do oásis ensolarado do sonho americano. Seu filme mais recente, Anora (idem, 2024), chega nessa mesma ideia de personagem, com a diferença de que Ani (Mikey Madison) consegue penetrar a barreira e chegar ao lado de lá do muro. Sob os holofotes de várias estatuetas do Oscar, incluindo melhor filme, direção, atriz e roteiro original, parece que o próprio Baker ultrapassou essa bolha finalmente.

Nesse mundo dos sonhos, Baker abandona parte de seu visual quase documental e neorrealista ao acompanhar a vida de pessoas marginais que lutam para sobreviver numa selva capitalista e adota uma estética mais estilizada, quase num ritmo de videoclipe, exagerado e farsesco, com muita luz neon, trilha em volume máximo e cores explosivas. É a forma que ele encontra de entrar numa espécie de transe multicolorido e luminoso, regado a sexo frenético, bebedeira, noitadas, viagens em jatos particulares e tudo de mais ostensivo que o dinheiro pode comprar. Mas o que começa como um conto de fadas moderno típico de Hollywood, que desde Bonequinha de Luxo (Breakfast at Tiffany’s, 1961) romantiza tanto esse submundo a ponto de colocar Audrey Hepburn vestida de Givenchy e tiaras de diamante e a gente mal se dar conta de que se trata da história de uma garota de programa, logo sai do terreno da comédia romântica e resvala em um novo filme. Se no primeiro ato Anora parece uma Cinderela do século XXI, um Uma Linda Mulher (Pretty Woman, 1990) atualizado e bem mais explícito, logo essa bolha se rompe.

O que acontece com a plebeia que virou princesa após o final feliz? Audrey Hepburn e Julia Roberts foram somente até o clímax do sonho, mas Mikey Madison ultrapassou essa linha e alcançou o lado de lá antes da metade do filme. Anora também é, simbolicamente, sobre os arredores da Disney, com Baker voltando a explorar a decadência do sonho americano e expondo um retrato bem cruel do preço humano dentro dos valores capitalistas, em que as pessoas são também mercadorias a serem negociadas em transações comerciais. Em dado ponto, o filme se converte numa comédia maluca de caçada ao noivo fujão, que mantém o ritmo frenético do início, mas ao mesmo tempo permite algumas pinceladas mais melancólicas e sombrias que antecedem seu desfecho dramático. Porque ele fugiu sem ela, afinal? O verniz começa a se rachar, ainda que o humor de Baker não nos permita digerir isso de imediato. Quem dá conta de pontuar essa virada sutil de roteiro é Mikey Madison.

A postura de Ani ao longo da história é em si a alma de Anora. Se por fora ela mantém a pose de garota sexy, desbocada, encrenqueira e inconsequente, seu olhar aos poucos vai denunciando o desmoronamento de seus sentimentos conforme as coisas vão fugindo de seu controle. Dentro desse ritmo incansável, a personagem vai acumulando em pouco tempo um sem-número de emoções diferentes, desde a euforia e a paixão até a desilusão, a insegurança, a decepção, o desemparo e a solidão. Por trás dessa figura cômica, exagerada e até estereotipada há um trabalho primordial de atriz, porque se não fosse por ela, Ani seria simplesmente um reducionismo grosseiro e insensível de uma stripper ou garota de programa. É a pura essência do cinema humanista de Baker, que consegue enxergar indivíduos em meio a estatísticas coletivas, manter um equilíbrio tão sensível ao retratar uma realidade sem afetações apelativas, sem autoindulgência ou autocomiseração, sem julgamentos, mas ainda assim desenhando personagens humanos, complexos, que despertam empatia mesmo em meio aos erros que cometem.

O contraponto de Ani é outro trunfo do roteiro de Baker aliado a uma ótima performance. Igor, o capanga da máfia russa vivido com tanta ternura por Yura Borisov, é um enigma de calmaria e polidez, um elemento de ordem desconcertante em meio ao caos. Tanto que a protagonista não consegue interpretar seus modos, fica desconfiada e confusa com sua gentileza e cavalheirismo livres de qualquer segunda intenção, que não a trata como objeto sexual nem como um produto numa prateleira ao saber que ela é uma prostituta. Ele compartilha dessa parcela de inocência que ainda sobrou nela, por isso a cena final é tão devastadora: ela querendo compensá-lo com sexo, pois essa é a única forma que sabe ou imagina que esperam que agradeça a alguém, enquanto ele procura lhe dar um beijo e um abraço de acolhimento. A catarse é justamente a constatação de que o sonho para essas pessoas nunca passou disso: uma ilusão passageira que deixa um gosto amargo.

Baker, que se destacou lá em 2015 ao filmar e editar sozinho um longa-metragem num iPhone e que desde então vem pregando a importância das salas de cinemas para os cineastas independentes poderem sobreviver e exibir seus trabalhos, combatendo a monopolização dos serviços de streaming e clamando ao público que não deixe morrer a cultura do assistir um filme em tela grande, agora está em seu momento de Ani. Vencedor de tantas estatuetas do maior prêmio da indústria cinematográfica mundial, parece uma ironia que Anora tenha servido de passaporte para seu momento de glória e reconhecimento. Se o seu destino será amargo como o de sua protagonista, só o tempo dirá, mas parece poético que ele tenha também a sua chance de aproveitar, nem que seja apenas por um minuto, a sensação de estar no topo.

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