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Críticas

Cineplayers

Uma adaptação de um quadrinho nada convencional: pode ser que você se reconheça ao assistir.

8,0

Em 2000, contra toda e qualquer expectativa, Bryan Singer, com X-Men, conseguiu realizar a primeira grande adaptação cinematográfica de uma história em quadrinhos. Desde então, dezenas de produções baseadas em gibis chegaram às telas, grande parte delas mantendo o padrão de qualidade alcançado por Singer na primeira aventura dos mutantes. Uma das adaptações mais interessantes é esse Anti-Herói Americano, que, apesar de não possuir semelhança alguma com as histórias de super-heróis, tem como origem as páginas ilustradas das comics.

Aqui, no entanto, não há seres com poderes ou vilões malévolos desejosos de dominar o mundo. Na realidade, a história de Anti-Herói Americano nada mais é do que o retrato do dia-a-dia de seu autor, Harvey Pekar. Arquivista em um hospital, Pekar é um homem mal-humorado e com uma visão pessimista da vida. Ao conhecer um talentoso ilustrador de quadrinhos, Pekar decide escrever seu próprio gibi, mas contando aspectos ordinários de sua vida. Nem o sucesso, nem um novo relacionamento serão capazes de mudar sua ressentida postura diante da vida.

Um dos grandes acertos dos diretores e roteiristas Shari Springer Berman e Robert Pulcini nesta adaptação é ressaltar o fato de que a vida de Pekar nada tem de grandiosa. A principal qualidade dos quadrinhos do autor era exatamente ser um contraponto às tramas fantasiosas envolvendo Peter Parker, Clark Kent e cia. Pekar é um homem comum, com um trabalho comum e que passa por situações comuns. Este era o elo de identificação do autor com seus leitores e esta sensação é capturada com habilidade pela câmera dos cineastas.

Aliás, é na riqueza destes pequenos momentos que Anti-Herói Americano demonstra força. Sempre com um comentário mordaz ou uma observação irônica a respeito dos fatos, Pekar nos apresenta a cenas rotineiras de uma forma divertida, especialmente ao mostrar como tais eventos o aborrecem profundamente. Em certo momento, por exemplo, Pekar se vê em um supermercado, tendo que escolher entre duas filas: uma cheia de pessoas e outra com apenas uma senhora idosa. Em seguida, ele explica como não se deve ficar atrás de uma velha judia em uma filha de supermercados, mas decide arriscar, apenas para se irritar enquanto ela usa todos os recursos disponíveis para conseguir descontos.

A cena descrita acima pode parecer completamente sem graça, mas esta é outra qualidade da direção de Pulcini e Berman. Eles jamais forçam alguma situação engraçada, uma vez que a própria persona peculiar de Pekar e sua postura diante destas situações é cômica o suficiente para o espectador – ainda que não o seja para o personagem.

O próprio processo criativo de Pekar é mais um exemplo de como sua vida nada tem de espetacular. Sem conseguir “desenhar uma linha reta”, como ele mesmo diz, o autor apenas cria os diálogos de suas obras, enquanto outros artistas encarregam-se das ilustrações (entre eles o famoso Robert Crumb).

Este fato, aliás, rende outra situação interessante: Pekar é retratado de diversas formas, exibindo em suas histórias um aspecto físico sempre diferente, de acordo com o traço ou a visão do desenhista em ação. Esta peculiaridade é bem explorada pelo roteiro, como quando Joyce afirma que não quer visitar Pekar por não saber o que esperar.

A questão ainda dá ensejo a outra cena interessante: na chegada de Joyce a Cleveland, ela começa a “enxergar” as diversas personificações de Harvey Pekar, utilizando as únicas referências visuais que possui do autor, em uma boa sacada visual misturando cenas reais e os traços das revistas.

Este artifício, aliás, é utilizado em outros momentos, quase sempre com bons resultados. Se as frases que aparecem no canto superior esquerdo da tela (“Anos 80”, por exemplo) soam gratuitas, os créditos iniciais e a justaposição das cenas reais com seu resultado final nos quadrinhos às quais estas inspiraram (em uma divertida montagem) cria um interessantíssimo diálogo entre linguagens, além de mostrar ao espectador como qualquer – e qualquer mesmo – momento pode servir de ponto de partida para as idéias Pekar.

No entanto, se esta experiência de Berman e Pulcini dá certo, o mesmo não pode ser dito da opção em intercalar cenas de ficção e documentais. A escolha de chamar o próprio Pekar para narrar o filme é válida e rende boas brincadeiras (“Este é o cara que está me interpretando, apesar de não parecer nada comigo”), mas a inserção de entrevistas com o autor e outras pessoas reais apenas prejudica o ritmo do filme, além de quebrar a “quarta parede”.

Em certo momento, por exemplo, Pekar é convidado para uma entrevista com David Letterman. Os cineastas optam por colocar a verdadeira entrevista ao invés de uma encenação desta. Como resultado, toda a suspensão de descrença construída é jogada por terra, pois o espectador perde a ilusão necessária ao apreço de qualquer obra não-documental, dando-se conta que está assistindo apenas uma encenação. E é uma pena que isto aconteça, pois este é o único defeito realmente grave de Anti-Herói Americano.

Mas as qualidades da obra superam este problema, como as grandes interpretações. Paul Giamatti entrega, provavelmente, a melhor atuação de sua carreira (o ator se sai ainda melhor do que em Sideways, outro belíssimo trabalho). O corpo sempre curvado, a expressão fechada, a voz falha e o olhar nervoso, evitando o contato com o interlocutor, são detalhes que ajudam a construir um Harvey Pekar tridimensional, evitando a armadilha de se tornar um personagem estereotipado, apenas rabugento e nada mais. A minuciosa caracterização de Giamatti deixa transparecer vulnerabilidade através do semblante carrancudo, algo fundamental para que Pekar não se torne repulsivo aos olhos do espectador.

Da mesma forma, o resto do elenco também se sai muito bem. A sempre talentosa Hope Davis aparece bem no papel de Joyce, surgindo como a “salvação” de Pekar. E, claro, é preciso comentar a hilária participação de Judah Friedlander como Toby, o nerd assumido. A composição do personagem, inclusive seu engraçadíssimo jeito de falar, certamente seria tomado como exagero por parte do ator se o verdadeiro Toby não aparecesse na tela, fazendo o espectador perceber – e se espantar – de que realmente existe alguém assim.

Contando ainda com diálogos inspirados (“Vida comum é um negócio muito complexo”), Shari Springer Berman e Robert Pulcini fazem de Anti-Herói Americano um filme original, corajoso, por brincar com a própria linguagem do Cinema, e extremamente divertido, explorando ao máximo a personalidade desajustada – e fascinante – de seu personagem principal.

O filme da vida de Pekar, pelo menos, nada tem de comum.

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