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Aquarius

(Aquarius, 2016)
7,9
Média
377 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

O tempo de Clara.

10,0
A filmografia de Kleber Mendonça Filho mal começou e é impressionante observar que a essa altura ela já tenha diversos elos de união dramática e imagética reconhecíveis, pois o diretor conseguiu um nível de comunicação quase único com a plateia, que o coloca numa posição ao mesmo tempo confortável e algo incômoda. Como a imensa maioria dos nossos cineastas, Kleber veio do curta-metragem e realizou diversas e premiadas produções antes da estreia em longas no documentário Crítico. A diferença entre ele e seus colegas é que seus longas têm tido tanta aceitação internacional que o cinéfilo brasileiro, na ânsia de esperar, caçou seus curtas e hoje em dia filmes como Eletrodoméstica, Vinil Verde e Recife Frio não só são muito conhecidos como são debatidos com a mesma propriedade que seus longas. O público já tem uma proximidade com ele e não faz distinção entre curtas e longas, numa atitude que poderia se abranger para diversos outros cineastas da nova geração que estão chegando e tem a mesma formação primal do cinema que Kleber, principalmente porque temos essa cultura forte e essencial com o curta. Na filmografia do Kleber essa identificação clara a primeira vista se dá também por aí, com o impacto do primeiro close do novo longa logo na primeira cena na praia; esse super close já se reconhece como assinatura de Kleber, e eu já identifico essa assinatura como fundamental. E particularmente linda.

Ao contrário de O Som ao Redor, não veremos dessa vez um mosaico sobre as ligações entre o Recife moderno e o arcaico sob todas as instâncias, mas uma investigação sobre uma personagem específico e o universo que o rodeia. Lógico que é um universo rico e detalhado, com personagens aguçados e muito bem delineados, mas ainda assim uma. Esse uma é Clara, que acompanhamos desde o belo prólogo de 20 minutos na sua juventude, durante o aniversário de uma tia. Prosaico? Sim, e assim será pelas próximas duas horas seguintes. Mas essa é o expediente de Kleber, transformar o diário em extraordinário. E nos dias de hoje, Clara é uma mulher bem sucedida na carreira, com três filhos criados, netos e o mesmo apartamento na praia de Boa Viagem. O problema é que Clara está sozinha: viúva, os filhos não a procuram com a frequência desejada, morando num prédio cujos outros moradores já cederam a especulação imobiliária e a deixaram num ambiente abandonado, Clara olha ao redor e não há ninguém ao seu lado. Se transforma ela em peça de resistência ao cobrar o amor dos filhos, ao cobrar a manutenção do desejo, ao cobrar espaço físico e emocional que será sorrateiramente tragado pela espiral de elementos externos a investir contra sua permanência no grande viveiro humano.

A fauna que o roteirista Kleber constrói em torno de sua formidável protagonista é expressiva e fascinante, como cada cena do longa também o é. No esmerado jogo que propõe junto com a montagem perfeita de Eduardo Serrano, Kleber descortina três capítulos e através deles vai costurando ponto a ponto o mapa afetivo de Clara, seus três filhos, os netos, seu irmão e cunhada, o sobrinho e a namorada, a empregada, as amigas, um salva-vidas amigo de praia, e seus antagonistas, o grupo da corretora que só espera por Clara pra demolir tudo e começar o condomínio de luxo de frente pra praia. A vida de uma mulher e dos seus para mais uma vez observar os requintados jogos de preconceitos tão velados que sua sombra só vez por outra dá as caras, a construção do medo através do pesadelo do cotidiano, uma nova reflexão sobre o encontro entre passado e futuro, dessa vez de forma muito pessoal - tudo isso burilado em diálogos que passeiam entre o desconcertante e a riqueza do banal aparente. Compondo esse mosaico, temos Irandhir Santos, Maeve Jinkings, Julia Bernat, Carla Ribas, Fernando Teixeira e tantos outros. No entanto dois nomes precisam ser realçados: Zoraide Coleto, a incansável secretária de Clara que saca expressões impagáveis, e Humberto Carrão, um pequeno grande ator, que vem de expressividade televisiva para uma explosão inimaginável de nuances internas, intenções não-reveladas e uma malícia juvenil escondida por trás de olhos vibrantes, que escondem um lado podre da classe mais abastada da sociedade, dissolvida com ácido no longa.

Mas tudo estaria descalibrado se não contassemos com uma atriz tão inteira quanto Sonia Braga. Só não vista no prólogo (quando Clara é colocada na charmosa pele de Barbara Colen), Sonia é praticamente uma estreante na retina de muita gente, que só ouviu falar de Gabriela, Dona Flor e Mulher Aranha. Pois é com a garra da mais dedicada estreante que nossa estrela máxima se joga no corpo de Clara e daí nasce um híbrido, uma personagem que é Sonia até onde se pode olhar no horizonte. Presente de Kleber escrito especialmente para ela, Clara é de fato um personagem inesquecível construído de maneira conjunta entre criador e criatura, resultando na mais intensa interpretação de 2016, repleta de uma força cênica e dramática presentes em cada fotograma capturado por Kleber, que mescla placidez com volúpia e medo e coragem e fúria e vida. É como se Sonia fosse também ela uma luz da fotografia, uma faixa da fantástica trilha sonora, um corte da edição, um objeto da direção de arte: Sonia é tão parte integrante do projeto e isso é tão natural, que é como se ela fosse também não humana, mas um instrumento possante na engrenagem de uma máquina feita de emoção e afeto.

Dois elementos permeiam o novo filme de Kleber Mendonça Filho e tem ligação direta com meu emocional: o tempo e a maternidade. Eu sei que talvez nem um imenso texto, ou vários, dariam conta de abarcar os inúmeros lugares por onde o longa passa, mas vou tentar observar o essencial de maneira minuciosa. É impossível não se sentir afetado pela condição de Clara, uma mãe que se ressente pela ausência, anseia presença  e tateia por palavras e gestos que recuperem o trio de filhos. Daí nasce a proximidade com o sobrinho a quem ela se desvela e de quem capta segredos. Em emblemática cena de discussão com a filha, Clara ouve a mesma falar de sua teimosia "que a fazia parecer uma velhinha e uma criança", no que responde positivamente, ela é uma velhinha e uma criança mesmo. Por ter uma trajetória acidentada dentro de casa, foi complexo assistir ao filme de maneira isenta sem ser capturado pela atmosfera familiar e real alcançada por Kleber e equipe.

E tem o tempo... afetos, memória, memória, memória... afetos... o tempo se faz presente como mola propulsora do filme ao se iniciar 35 anos no passado, com direção de arte marcada, fotografia (mais uma a cargo do brilhante Pedro Sotero, em parceria com Fabricio Tadeu) esmaecida com filtros que enevoam aquele ambiente que não é mais, com uma reunião de comemoração entrecortada por um hit do Queen a todo volume no toca fitas do carro, reunião essa que termina da maneira apoteótica que a minha própria infância já viu: os versos "que Deus deu, que Deus dá" de 'Toda Menina Baiana' de Gil sendo entoados em alto e bom som no clímax da festa. Arrepio. É o tempo que passa por Clara e vaza da tela grande até o espectador. Clara sabe de tudo que já viveu e do tanto que ainda quer viver, pra isso precisa estar do lado do tempo, das raízes que o tempo molda, das amizades e dos amores que o tempo fortalece, da cidade que o tempo mudou mas que também mudou a ela, na casca. Porque Clara está intacta, é uma sobrevivente do tempo e vai levar seu tempo e sua história pelos meandros do belíssimo longa de Kleber.

Comentários (8)

Jonas | sexta-feira, 02 de Setembro de 2016 - 13:45

Esqueçam a política, é sim um FILMÃO!!!

Arthur Brandão | sábado, 03 de Setembro de 2016 - 18:04

A pessoa ir ver esse filme e já julgar pelo posicionamento do diretor ou da obra por causa de política... chega a ser infantil. Julgar todo o conjunto por isso é perda de tempo.

Estou curioso e pretendo ver assim que possível, embora não tenho certeza que chegue aqui pelas bandas...

Ótima crítica, Carbone!

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