A primeira imagem de Ariel não é de uma ilha, nem de um rosto, mas de uma ideia: a arte como um ciclo infinito de reencenação. Desde os primeiros minutos, Lois Patiño nos mergulha num espaço fora do tempo, onde a ficção não apenas domina a realidade, mas a substitui. Através de uma encenação deliberadamente artificial, filmada nas paisagens naturais da ilha do Faial, nos Açores, o cineasta espanhol propõe algo que vai além da narrativa: um estado de suspensão, onde a própria lógica do cinema se dobra às regras do teatro e do sonho.
Conhecido por filmes de forte carga contemplativa e experimental (Costa da Morte (Costa da Morte, 2013), Samsara: A Jornada da Alma (Samsara, 2023)), Patiño retoma aqui uma inquietação que já atravessava Sycorax (Sycorax, 2021), curta-metragem codirigido com Matías Piñeiro e inspirado em A Tempestade, de William Shakespeare. Mas enquanto naquele trabalho predominava uma atmosfera quase etérea e abstrata, Ariel opta por uma abordagem muito mais verbal, explícita e até pedagógica. As personagens explicam a lógica do mundo que habitam. Cenas se repetem para garantir que o espectador compreenda as regras. O filme não se esconde atrás de mistérios: ele quer ser entendido.
E o que está em jogo aqui é justamente isso — um jogo. Todos os habitantes da ilha são personagens que vivem dentro das obras de Shakespeare. Mais do que atuar as peças, eles existem nelas, presos a falas fixas, a destinos trágicos, a ciclos narrativos que se repetem ininterruptamente. Quando alguém lê um livro do bardo, eles despertam para mais uma encenação. Quando o dia termina, tudo começa de novo. Quem morre, ressuscita. Quem ama, sofre. Quem trai, reencarna a traição. A arte, nesse universo, não é catarse nem libertação: é rotina.
Dentro desse mundo fechado irrompe Agustina (Agustina Muñoz), uma visitante do “mundo real” — ou talvez uma personagem que pensa que é real. Em meio a essas figuras que recitam Shakespeare como quem respira, ela surge como força de perturbação, provocando os códigos do lugar, questionando a lógica da prisão ficcional e, sobretudo, desestabilizando o próprio pacto com o espectador. Em determinado momento, ela declara estar num filme dirigido por Lois Patiño. Em outro, revela sua ascendência de atores. A metalinguagem, portanto, não é aqui um truque de sofisticação intelectual, mas uma estratégia de aproximação lúdica, quase infantil: estamos todos brincando de teatro.
Há ecos claros do teatro do absurdo — especialmente de Seis Personagens à Procura de um Autor, de Pirandello — na forma como a existência dessas figuras é inteiramente atravessada pela necessidade de representar. Mas, ao contrário da angústia existencial que marca o absurdo clássico, Ariel assume um tom doce, onírico e quase cômico. A repetição das falas não é castigo, mas condição. A artificialidade da mise en scène é celebrada, não disfarçada. E a teatralidade se torna motor de uma experiência audiovisual que se propõe como uma fabulação comunitária.
Nesse sentido, talvez o gesto mais bonito do filme seja a maneira como Patiño envolve os próprios moradores da ilha em sua dramaturgia. Pessoas comuns, não-atores, interpretam personagens shakespearianos em registros que oscilam entre o amadorismo e a espontaneidade, sem qualquer pudor de exposição. O objetivo não é alcançar a perfeição da performance, mas evocar a potência do jogo: o prazer coletivo de se fantasiar, de ocupar papéis, de brincar de ser outro. Como resultado, Ariel esboça uma utopia estética — onde o teatro clássico pode conviver com o sotaque local, e onde o cinema de invenção pode se tornar acessível sem se tornar raso.
Essa convivência entre o erudito e o popular, entre o clássico e o contemporâneo, também se revela nas escolhas visuais do filme. A fotografia é delicadamente irreal, com tons lilás, rosas e azuis que dissolvem qualquer traço de naturalismo. As transições entre cenas são marcadas por imagens do mar, repetidas à exaustão, como se o próprio oceano fosse um marcador de tempo (ou da sua ausência). E numa das passagens mais belas, vemos os personagens dormindo numa balsa enquanto seus sonhos se alinham, como se toda a narrativa existisse apenas na consciência coletiva de um devaneio.
Essa dissolução das barreiras — entre realidade e ficção, entre arte e vida, entre representação e memória — é o cerne do cinema de Patiño.
No fim das contas, Ariel é menos sobre Shakespeare e mais sobre o que significa encenar. O que acontece quando se vive dentro de uma obra? O que acontece quando a obra se recusa a acabar? O que significa estar preso a uma fala que não é sua, mas que precisa ser dita todos os dias?
Patiño não oferece respostas. Mas ao assumir a artificialidade como princípio e a fabulação como forma de comunidade, entrega um filme que acredita na arte como um gesto coletivo e reiterado — uma peça que nunca termina, porque talvez o fim não importe tanto assim.
Filme assistido no Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
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