Violência urbana numa trilha de cinema porradeiro do cacete
John Carpenter alopra no gênero policial com um verniz de faroeste. Obra densa e grossa em que características do seu cinema começam a sobressair-se. Filme cru. Bruto. Início na porrada. Na lata. Polícia não mostrada. Somente as armas. Dica da estratégia do diretor perante a fita. A violência urbana. Não um estudo dela, mas um testemunho da própria, naquilo que ela tem a oferecer e em como somos condicionados a naturalizá-la porquanto algo tácito a qualquer metrópole. Obviamente o diretor abraça tudo isso impondo seu ritmo e seus absurdos – habituais num futuro próximo – em favor dum animalesco cinema de qualidade.
Relações duras entre os personagens. Algo comum nos westerns. Os arquétipos clássicos. Xerife valente e honesto, pistoleiro ordinário estiloso e a mulher invocada afim do menino malvado. Ao que parece, o nosso chapa John homenageia um mestre seu, Howard Hawks, principalmente no filme Quando Começa o Inferno (Rio Bravo, 1959). Porém, deixo o mérito desta questão na tangente, porque não conheço porra nenhuma do Hawks. Fica aqui registrada a minha ignorância de presente na direção de vocês. Escrito isso, afirmo a transposição de elementos western poeirentos – e suas figuras – para a urbanidade, onde a brutalidade continua tendo espaço junto a ares duma civilidade com a validade vencida. O tema da selvageria urbana é pautado, servindo atmosfericamente para o Carpenter criar suas set-pieces da ação, baseadas na fisicalidade dos personagens. E como sua câmera enquadra bem estes momentos desesperadores mediante o desconhecido. A inquietação cresce lentamente. A explosão disso vem da cena mais chocante. A morte da criança. Seca. Brutal. Sem motivos, que nem são precisos. Ora, o que é mais atemorizante que a falta de objetivos claros a se perceber nestes tipos escrotos? Os vilões. Inconsequência, agonia e insanidade. Eterna repetição dum suicídio coletivo perpetrado pelos psicopatas ao entrarem inadvertidamente por janelas somente para serem crivados com chumbo. Analogia braba a uma seita doentia de processo zumbificador. Não interessam motivações ou planos, mas, sim, os conceitos extremos de desvario e isolamento num ambiente urbanoide. Bem próximo à nossa realidade tanto quanto podemos ensejar no esquema visual, tal qual nosso aceite no conceito de piração proposto num bando de rua.
Trilha sonora foda. Prenuncia a desordem. Este é o primeiro trabalho musical imenso do Carpenter. Com a assinatura de tensão acompanhada que seu material traz confluência impecável junto a imagem. E possui uma idiossincrasia peculiar. A trilha passa bom tempo a seguir os pilantrosos. O resto dos tipos é mostrado em silêncio musical e diálogos expositivos e personalistas, exceção feita ao pistoleiro modernoso Napoleon Wilson, tendo destaque equilibrado entre discurso e música ao ser apresentado. Ele seria a figura balanceada entre a bonança e a desgraça. E porque a bandidagem não fala? Motivação? Que se lasque. Singular entidade viva e desgovernada do caos com seu som sepulcral dos passos, ruídos corporais outros, o ranger metálico das armas e a música – são a conjuntura de uma voz esganiçada que quer avacalhar aquilo que estiver pela frente. Não há objetivação. E esta miscelânea existe para estraçalhar e se exibir como detentora da destruição no mosaico de perigo urbano tanto citado. Mas sem lição moral nenhuma. Nada. Somente a existência da maldade imbricada sobre o elemento cinematográfico. Por isso a percussão da trilha é repetida à exaustão em suas batidas. Cerca a putaria brutal da gangue movendo-se sem padrões, seguindo arrombando tudo no percurso. E o clima lúgubre desse perigo é completado pelos teclados e sintetizadores que apontam à continuidade inesgotável e sem freios de maledicências daquela turba.
A câmera, caramba. Por excelência. Iluminação naturalista nas externas antes da ação na delegacia. Numa boa. A mesma luz dada a todos, os conflitos estavam a caminho ainda. Suas lentes são complacentes com aquela esculhambação anunciada, dava tamanho e espaço para o caminhar dos escrotos, mostrando seu perambular pelas ruas até encontrarem algo grande para se alimentarem. A turba monstra com fome. A chegada da tenebrosidade. 13º Distrito. Antes bem iluminado nas externas citadas, mas ao anoitecer entra numa opressiva escuridão inescapável. Com uma luz se infiltrando apenas por frestas de janelas, como algo à espreita lá fora. No aguardo. Uma visita à paranoia. Tema recorrente do diretor, onde aqui se justifica não só pelo desconhecido, mas pelas condições ensejadas. Desespero, solidão e desarmamento. O ataque é frontal. É decupado mediante a perspectiva dos resistentes no distrito. Enclausurados mediante a hecatombe urbana dos seres externos. Planos fechados por lá, e a galera sendo amassada neles. Enquanto do lado de fora as imagens são abertas, num conluio conurbatório entre o nada exibido e o apavoramento deste nada. Tem algo ali à espreita. Tem-se a explosão nas balas e destroçamento dos avulsos em ataque. Só carne, roupas e sangue. A ameaça desconhecida na sua plenitude. A fotografia não se furta e conta com montagem rápida e propositalmente repetitiva dando ênfase no clima amedrontador, desesperado e combativo daquele ambiente miserável. Entrecortando entre explosões de chumbo e corpos caindo enquanto outros tomam o seu lugar. O apocalipse.
A excelente noção de cinema do Carpenter já é prova viva. Em imagem e som. O resto que se vire. Com direito a uma criação invocada em sua trajetória. Ele mata o vilão inicial. Já havia surpreendido os incautos com o tiro nos peitos da criança e agora já trucida o antagonista antes da metade da fita? Era só parte da problemática. Mas que negócio é esse animal? Ele aqui parte para um caminho pelo qual ficaria conhecido. Carpenter é o monstrotificador das crias e criaturas. E o que diabos é isso? O cara pega qualquer negócio e transforma num monstro com características tácitas. Desejo destrutivo. Fome. Tensão sem tamanho. Desajuste completo. Ameaça social. E por aí vai. Transplantaria isso em audiovisual nas suas várias obras posteriores. Aqui é a gangue do meio da rua que vira um corpo vil de puro esculhambatório monstruoso. Físico e vivaz. Uma organicidade maliciosa. Orquestrada pela avulsa vontade do destroçar. Esse é o cinema do comandante. Cinema monstro. Onde a imagem e som respiram ofegantemente por trás, não em tom somente de intimidação, mas como forma de aviso mortal sem escapatória. A epistemologia da desgraça.
Texto integrante do Especial John Carpenter
Tô pra ver esse filme há um tempo. Vou tentar ver essa semana!
Pois arrocha aí que vale a pena.