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Críticas

Cineplayers

A contemplação de Hou Hsien-Hsiao.

8,0
Do cinema de Hou Hsien-Hsiao, só conhecia anteriormente Millenium Mambo, filme de 2001, coincidentemente protagonizado pela mesma atriz, a belíssima Qi Shu. Se o estilo articulado por Hsien é o exposto nesses dois filmes, o diretor chinês possui como marcas principais a contemplação como potência narrativa primária e a utilização de personagens femininas virtuosas.

Qi Shu está assombrosa no papel da assassina Nie Yinniang. A câmera geralmente está distante da personagem, e muitas vezes a evita. Mas quando Yinniang aparece, suas feições são carregadas com emoções o bastante para investirem o filme com o peso dramático necessário afim de fazer as coisas funcionarem.

Porque há um peso dramático necessário, e há todo aquele que poderia ser utilizado a despeito da necessidade, mas não o é, porque o filme é essencialmente um estudo sobre a percepção do espaço, e sobre o papel da contemplação no cinema contemporâneo. Há uma trama acontecendo, e essa trama é importante para estabelecer uma cadência entre os momentos do filme, mas há uma força notável que empurra delicadamente a trama para segundo plano, fazendo ser notada distinguivelmente.

Como graduado em artes, fui imediatamente remetido às pinturas de Constable, o pintor inglês cuja marca predominante para mim é a produção de paisagens belíssimas e naturais, com pequenas intervenções de pessoas humanas ou trabalho humano (como casas da madeira, carroças etc).

Embora Hsien construa planos com essas mesmas características, como quando do último encontro entre Yinniang com sua mestra em um alto monte, com névoas e ameaçadoras nuvens preenchendo um grande espaço da tela enquanto a câmera faz o movimento de panorâmica, o efeito de contemplação é obtido também através de aproximação de sua câmera em ambientes íntimos e fechados.

Os âmbitos familiares do filme, em especial, possuem essa aproximação. É um momento claro de contemplação que consegue articular uma ideia poderosa em termos narrativos. Seja um diálogo entre marido e mulher, ou um pai brincando com filhos, a câmera do diretor está como que paralisada, estática em seu olhar, semi-encoberta por objetos como pilastras, vasos ou panos semi-transparentes. O espectador pode inclusive se perguntar porque o diretor insiste em preencher longas passagens do filme com esses momentos. A resposta está na diegese: a câmera nesses casos é subjetiva. São os olhos de Yinniang fitando aquilo que ela nunca teve – o afeto da família.

Nas cenas de batalha, a contemplação também dá o tom. Há pelo menos três cenas de luta, além de algumas outras marcadas por certa violência. Nelas, a câmera permanece ao menos parcialmente estática, os cortes e os movimentos são bastante sutis. A imagem registrada é fundamental, e é também fundamental para Hsien que o espectador tenha tempo suficiente para digeri-la.

É um movimento em completo desacordo com o que temos de produção vigente em termos de cinema americano ou europeu. Para fins de comparação, peguemos um exemplo desse ano de um filme muito elogiado e que, na minha opinião, articula imagens dentro do gênero de ação de uma maneira bem sucedida: Mad Max – Estrada da Fúria.

O filme de George Miller é um espetáculo vibrante de imagens impressionantes. Se antes comparei as imagens de Hsien com a contemplação de Constable, as imagens de Miller parecem marcadas por um tom fortemente ligadas ao impressionismo: as explosões, o fogo, os tiros e batidas de carros em Mad Max são retratados em ângulos perversos e cortes ultravelozes. As imagens são pouco distinguíveis entre si e do que representam por si só, assim como as pinceladas dos pintores franceses pertencentes ao movimento impressionista. Mas, no conjunto, elas criam um sentido de representação maior, carregados de dramaticidade e potência.

Eu utilizo o exemplo de Mad Max apenas para ressaltar a ideia de que a escolha pela relação entre planos x tempo não é dotada por si só de mérito artístico/cinematográfico (embora, desde aos anos 1990, passando pela linguagem MTV e culminando com  Michal Bay, esse estilo de cinema pautado pelos cortes incriteriosos é, de maneira geral, bastante desgraçado). O mérito será derivado da maneira com a qual o diretor articula essa relação, ligada à proposta do filme.

A Assassina tem como proposta óbvia ser um retrato contemplativo de uma história específica, e Hsien usa os já mencionados méritos para alcançar, com muito êxito, esse objetivo. Há uma observação feita por muita gente, tanto aqui no Brasil quanto nos comentários americanos, de que os personagens são pouco distinguíveis entre si. Uma observação da qual compartilho voz. Por grande parte do filme fiz pouca ideia de quem a maioria dos personagens era. Isso naturalmente é um defeito que prejudica em certo nível o filme (afeta, por exemplo, a nossa capacidade de concentração do que está na tela). Mas por se tratar de um filme cuja proposta está tão ligada à contemplação (que por sua vez se liga, mesmo que um pouco, ao abstracionismo), esse demérito não é tão levado em consideração quando se vai analisar o filme como um todo, onde os aspectos visuais e sensitivos do cinema de Hsien serão mais mencionados e ovacionados.

Comentários (4)

Augusto Barbosa | quarta-feira, 25 de Novembro de 2015 - 21:13

há uma força notável que empurra delicadamente a trama para segundo plano, fazendo ser notada distinguivelmente.

Essa é, quiçá, a característica mais notável dos filmes de Hou - os fatos "relevantes" se desenrolando ou sendo discutidos ao fundo e nós mais preocupados com os detalhes em que o cara quer que a gente foque, os quais, em regra, são os mesmos alvos de atenção das personagens. Faz parte do método de imersão nos mundos particulares deles, ao lado da série de outras inúmeras decisões estéticas, no mínimo, inusitadas que Hou toma para nos conectarmos sensivelmente com esses personagens - neste, uma que salta bem aos olhos é o de filmar as conversas privadas através dos véus que preenchem os cômodos íntimos: num primeiro momento, parece normal; com a insistência, estranhamos; e, ao fim, nos é revelado que esse é a perspectiva de Qu Shi, que está sempre à espreita.

Augusto Barbosa | quarta-feira, 25 de Novembro de 2015 - 21:19

E Hou retrata pessoas que se encontram de certa forma perdidas na vida, um tanto anestesiadas pela pressão e a correria que as envolve. Ele nos transportar essa sensação é o que gera esse grau de confusão ou mesmo indiferença com os personagens e acontecimentos secundários. Efeito similar ao que Kar Wai extrai também, apesar de os caminhos trilhados para chegar nesse resultado sejam bem diferentes e Hou ser mais bem-sucedido.

Guilherme Bakunin | sexta-feira, 27 de Novembro de 2015 - 11:08

sim, as personagens de Mambo e Assassina são bastante similares nas carências, afetos e por serem subjugadas/manipuladas por um outro personagem. felizmente, para as garotas de ambos os filmes, elas conseguem eventualmente romper o ciclo de dominação ao qual foram submetidas, escapando para um lugar estrangeiro, onde foram bem recebidas pelos locais.

é uma articulação de imagens e história bem interessante, por isso mesmo eu ressaltei que o empurrão que a imagem dá à trama é "delicado". no final das contas, a forma e o conteúdo possuem uma relação de certo modo equilibrada, cada qual com suas potências.

enfim, obrigado pelo comentário! espero conseguir tempo para ver pelo menos flores de shanghai em breve.

Augusto Barbosa | terça-feira, 01 de Dezembro de 2015 - 20:49

Pô, 'taí, isso do lugar estrangeiro calha a ser um tanto recorrente nos filmes dele que vi até agora também, não tinha me dado conta. E, de fato, materializa o desejo de fuga da realidade que costuma estar presente em seus personagens.

Foda do Hou é isso, falar dele leva necessariamente a discutir a imagem, o ponto-de-vista e a manipulação do cineasta e sua relação com o plot. Tô seguindo a filmografia dele também, mas já dá vontade de rever os já vistos, rs.

E, cara, tu 'tá suprindo (muito bem) umas lacunas feias aqui do site - com as críticas pra Kawase, Hou agora, etc. Ainda bem!

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