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Críticas

Cineplayers

A visita de Brannagh a (mais) uma instituição sagrada.

8,0
Olhar a carreira de Branagh como diretor mostra seu grande interesse em certos ícones clássicos e populares, e a busca pelo entendimento de como esses ícones ajudaram a compreender uma espécie de mitologia secular que acabou por moldar nossa visão de mundo - seja os reis shakesperianos em Henrique V e Hamlet, o monstro de Frankenstein de Mary Shelley, o personagem de quadrinhos Thor e a princesa de contos de fada Cinderela.

Dono de um cinema ao mesmo tempo fragmentário e plástico, a entrada de Branagh no universo de Agatha Christie, não apenas dirigindo mas protagonizando Assassinato no Expresso do Oriente, como o “melhor detetive do mundo” Hercule Poirot, não é estranha ao cinema do diretor. De certa maneira, Branagh adora recriar respeitosamente esses ícones, mas enxergar seu lado humano, arrancando dali sua subversão. Não existe sacralidade nos ícones que Branagh esculpe.

Eis aí porque ele enfoca o Thor humanizado, que tem de conquistar seus superpoderes de volta; eis aí porque sua Cinderella parece tão resoluta em sua bondade “rebelde” frente ao tradicionalismo tóxico de Lady Tremaine; como ele filma a criação de Frankenstein como um puro ato de loucura humana tentando alcançar transcendência divina e como a criatura nasce olhando nos olhos de seu criador, filho não de amor mas de tormentos; e o exercício de beleza, colagem e distorção que sintetiza em Hamlet. 

A Branagh interessa toda a beleza e toda a feiura do cinema. Quando filma Poirot investigando o assassinato do detestável Ratchett, está ali o típico personagem branaghiano; certamente originário de outra fonte, com um inesperado olhar se intrometendo. Christie encarava Poirot como, apesar de tão talentoso, “um pouco chato”, em suas próprias palavras. 

Já o Poirot do Kenneth Bragh, ator e diretor, é insuportavelmente chato ao ponto do transtorno obsessivo-compulsivo (como a preparação do prólogo demonstra), mas também um homem que pode ser quebrado de suas certezas. É um personagem resoluto, que sabe com que motivo existe no mundo, mas também está como poucas vezes vulnerável, sentindo saudade, remorso e arrependimento em suas constantes interações com o retrato de uma mulher de nome Katherine. Ao contrário do resto do elenco de personagens suspeitos, onde conversas instrumentalmente em outros idiomas são revertidos em algum momento para o inglês, o francês singular da Bélgica dita o tom das conversas de um sentido Poirot.

Esse protagonista vacilante e imperfeito - e também cansado de tanto atender às infinitas requisições do seu talento - encontra seu maior desafio na morte do detestável Ratchett. Aspecto mais criativo da história original de Agatha Christie, o vilão não é o antagonista, mas a vítima. E os prejudicados pela torpeza do homem, os suspeitos. E aqui, o suficiente para tirar o Poirot de Branagh literalmente dos trilhos, onde anda de maneira cada vez mais vacilante ao tentar descobrir o criminoso em cima de um trem descarrilhado - o que torna-se uma analogia óbvia entre estado físico e estado mental do personagem.

Certamente será feita a comparação da nova adaptação com a primeira, dirigida por Sidney Lumet em 1974, mas esqueça: é a mesma história, mas é uma abordagem bastante diferente. A câmera de Branagh é hiperplástica no ponto onde a câmera de Lumet era hiperrealista. As nuvens de maria-fumaça do inglês são atmosféricas e carregam Poirot numa sina praticamente fantástica; já o Expresso Oriente do americano é envolto em espessa névoa cinzenta, viciosa. Mesmo dirigindo grande elenco, Lumet mantinha as técnicas do cinema direto e pouco luxuoso que assumiu nos anos 70 em filmes como Um Dia de Cão e Serpico, então filmou as sombras, as luzes estouradas, o balançar constante do veículo, apontou com a câmera todos os pequenos detalhes. 

Já o crime no trem de Branagh é um pesadelo subjetivo, por assim dizer. Quando acaba de se apresentar como investigador, a câmera corta para a visão subjetiva de Poirot, que enxerga os suspeitos através das portas de vidro e vê seus reflexos duplicados. Quando analisa as cenas do crime, é de uma câmera zenital (90º graus de cima), destacando o método que Poirot afirma praticar de “analisar o comum para destacar o incomum”. Um tipo de angulação que pode ser um tanto impessoal - pois não estamos vendo rostos, mas topos de cabeça, portanto não estamos acompanhando expressões, o que nos obriga a compartilhar da impessoalidade analítica de Poirot.

Por esse escopo, é curioso notar como o Expresso do Oriente é um ambiente com limitações espaciais e que Branagh lidará com essa espacialidade diferente (pois não esqueçamos que cinema, além de ser a arte do tempo, é também a arte do espaço, que percebemos com olhos e ouvidos). Raras vezes os personagens serão enfocados em um único plano. Quando o são, é porque a câmera está viajando ao redor do trem em um plano sequência de alta complexidade técnica, ou porque o diretor posiciona janelas e portas entre personagens e espectador. As portas que quando são abertas ocultam nossa visão de corredores, os ruídos dos compartimentos vizinhos, o inconveniente de basicamente só ter duas direções a tomar, norte e sul, certo ou errado, que apesar de serem apenas linhas retas de um ponto a outro, logo atingirão o personagem em cheio com curvas sinuosas e pouco óbvias, com personalidades contrariando a geometria. Branagh engenhosamente aproveita esse espaço de meias-verdades, de vilões dotados de mortalidade e de vítimas com segredos.

Contrapondo o belo Assassinato no Expresso do Oriente, o mundo fantástico onde Poirot desvenda crimes, no qual existe o terrível Assassinato no Expresso do Oriente, é um componente do cinema fragmentário de Branagh. Trata-se da forma que o diretor escolheu para lidar com os flashbacks de vítima e suspeitos. E o espectador pode se sentir tentado a ver uma rendição ao cinema clássico aqui: fotografia preto-e-branca, janela quadrada (4:3). Mas eis que nisso que é entendido como o charme de tempos mais inocentes é que o filme se torna horrível, filmando tragédias e desvendando mistérios, movendo-se caótica e errática e com os atores enfocados de maneira distorcida, performando assim de uma maneira visceral que não parece tomar parte do filme colorido, cheio da fina maquinaria cinematográfica, com gracejos ocasionais e performances dúbias transitando entre a mentira e a sinceridade.

Decerto gerenciar um filme com tantos nomes famosos é um trabalho tão recompensador quanto ingrato, pois todos terão de realizar suas jornadas, encontrarem seu tom, justificarem sua significância para a história. Josh Gad como o homem falido que trabalha para Ratchett tem excelentes momentos, mas quando o crime é descoberto, apaga-se quase que completamente. O contrário ocorre com Michele Pfeiffer que, se de início parece um tanto morna e genérica, consegue trazer peso dramático para seu papel. 

Outros nomes no elenco, como Derek Jacobi, Helen Mirren e Penelope Cruz, têm dignidade dramática e por vezes até cômica em cena, mas é certo que o filme acaba tendo de privilegiar outros nomes. Johnny Depp estacionou no mesmo tipo de atuação há muito tempo, mas Branagh soube fazer funcionar como um típico personagem antagonista de trama policial, carismático em sua antipatia e mau-caratismo.

Miolo interessante é quando vemos entre Willem Dafoe, Daisy Riley e Leslie Odom Jr. a abordagem de temas políticos da época, como fascismo e racismo, ainda abertamente comuns e que Branagh não tentou censurar. Um eventual incômodo do espectador é frequentemente compartilhado dos personagens, que jogam o tempo todo com seus papéis sociais respeitáveis - comerciantes, nobres, artistas, mordomos, enfermeiras - e acabam por se encontrar fora do mundo benigno - descarrilhados na nevasca às voltas com um assassinato.

Alguns exageros na música e nos diálogos (especialmente nos sofridos monólogos de Poirot) podem tirar o polimento do brilho de Assassinato no Expresso do Oriente. A linguagem adotada por Branagh é usualmente polarizadora, com o espectador embarcando ou detestando o carnaval de figurinos, performances e técnicas acima do tom usual para o cinema. O diretor finca o pé firme na opção pelo estilização ao máximo, no casamento ou ao menos flerte entre diferentes estilos, da contraposição como costura de diferentes conjuntos.

Kenneth Branagh visita a instituição Agatha Christie com segurança e maturidade, e mesmo que não chegue a ser a grande mescla entre triste realidade e fantasia farsesca que era um Testemunha de Acusação, de Billy Wilder, se sobressai como, além de um suspense de primeira, um grande estudo sobre tradições, hipocrisia, paixões e vingança; temas tão caros a Christie que viram não um, mas muitos mundos cinematográficos possíveis pela lente de Branagh, um verdadeiro desbravador do imaginário popular.

Comentários (1)

Felipe Lima | quinta-feira, 14 de Dezembro de 2017 - 17:54

Texto excelente. Parabéns!

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