Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

“Olhe e não intervenha. Observe e não julgue.”

9,0

Sem volta, Wang Bing mergulha de forma assustadoramente próxima com sua câmera em uma instituição psiquiátrica do Sudoeste da China que interna de forma compulsória cerca de uma centena de pessoas dos mais variados tipos – agitadores políticos, criminosos violentos e outros com deficiências mentais – com diferentes períodos de internação que, dentro de uma habitação decrépita, experimentam uma sensação de enclausuramento, inércia e opressão que gera uma rotina tão contemplativa quanto desesperadora.

Em suas extensas quatro horas de duração, Wang faz um filme que é, de fato, desgastante. Seu filme não engana, não cria narrativas foras da realidade, não distrai o olho com possíveis demonstrações de habilidade técnica; um grande porém reduzido espaço, um tempo diegético quase sempre extenso e sem destino exato; o registro explora o que é sensorial, explora ritmos, movimentos, situações que surgem e somem para voltar ao cotidiano; com um modo de filmar tão natural e fluido que parece decupado, os planos são simples e objetivos, acompanhando com interesse seus personagens e a forma que arranjam de esquecer o espaço que os prende. E esse é o único desgaste, em um sentido longe de ser pejorativo: a atmosfera é tão intensa e tão íntima que é difícil o espectador não sair devastado.

O olhar quase imparcial que pode parecer existir em um primeiro momento, com uma câmera que não julga, apenas observa e apenas acompanha, acaba revelando ser uma câmera próxima, que os internos já se acostumaram e com naturalidade se deixam serem seguidos e filmados em seus momentos de intimidade, enquanto fazem suas necessidades, enquanto brigam, discutem e se agridem ou enquanto buscam afeto. É isso que torna seus planos sequências se tornarem registros vivos de uma câmera que objetiva em um primeiro momento, tem sua percepção atraída para detalhes específicos, para narrativas que se alternam, vão e voltam, somem por boa parte e tem sua continuidade lá para o final.

Sem pregar política, sem críticas didáticas ou explicações sobre os problemas sociais da China, Wang Bing deixa que as imagens falem por si: as paredes degastadas, o ferro enferrujado, o aspecto algo fantasmagórico de pessoas indesejáveis pela sociedade por causa das condições pouco higiênicas e o tratamento que vão, pouco a pouco, tornando seus indivíduos apenas lembranças do que poderia parecer um ser humano com alguma vitalidade. Com ataques ocasionais de agressividade – sempre punidos – circulam por aí em busca de restabelecer relações com o outro, em busca de afeto e calor humano, como uma forma de resgatar o que lhes foi privado do lado de fora.

Em um microuniverso confuso como a mente de seus protagonistas, Wang Bing foi além do estereótipo do “louco”, e assim como a paráfrase de Confúncio na chamada do texto, não manipula nem interfere. É observado e referenciado por vezes, mas está sempre correndo atrás como um observador invisível e encontrando ali nas repetições maníacas, nas obsessões, nos espectros que passam pelo canto dos olhos de seus personagens as profundas aplicações de uma violência no dia a dia, que já detém aqueles homens a cinco, dez, vinte anos, tanto tempo que cada caráter ali é transformado de maneira indissolúvel com o tempo, como no arco que é filmado a licença de um dos internos. O interno passa a ser deslocado em sua própria casa, repetindo os costumes que tinha na instituição, andando sem rumo, contemplando a paisagem com frequência, não conseguindo recuperar o contato com entes próximos e entrando em conflito com eles, que ameaçam mandá-lo de volta.

Conflito vago e dissoluto, com a contenção formal fazendo parte de uma macro-estrutura onde cada pequeno pedaço tem importância imperativa sobre o todo; pequenos blocos de sensações que, pouco-a-pouco, tornam cada centímetro daquele universo palpável, responsável por tornar um universo degradante, aberrante e em estado crítico em algo humano, orgânico e fluido, com um espectro de emoções que vai de uma leveza minimalista, como quando é ano novo, quando a comida é repartida, quando um casal de diferentes alas – separadas por sexos – troca carícias separados por uma grade, até homens urinando no chão, internos algemados e discussões agressivas e amargas com os familiares que vem visitar. A obra de Wang Bing pulsa desimpedida no seu realismo revelatório praticada sem cartilha, sem linha mestra, sem ciclo sendo necessariamente fechado. Sem regra além da pura expressão através da observação exaustiva.

De um ritmo exaustivo de filmagem – quatro meses filmando todo dia, do dia à noite, Até Que a Loucura Nos Separe surge tal como a obra plenamente contemporânea que, fruto da prática de um cinema pessoal, em uma exploração exaustiva de sensações acima de narrativa e dramaturgia, firma um novo pacto, reinventa a percepção, explora novas atmosferas, novas sequência, nos faz grudar em um mundo sem limites nem fronteiras, e sair de lá tão transformados quanto os homens que foram trazidos à luz; igualmente, após a tour-de-force, já se teve contato com um universo desconhecido que só o cinema, com suas características, poderia tornar tão familiar em sua estranheza. E é justamente por isso que poucas experiências são tão impactantes e enriquecedoras quanto assistir a nova obra de Wang Bing.

Comentários (2)

Reno Beserra | terça-feira, 15 de Outubro de 2013 - 22:37

e esse nome...

Faça login para comentar.