Saltar para o conteúdo

Auto da Boa Mentira, O

(O Auto da Boa Mentira, 2021)
4,3
Média
3 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Bebendo em Suassuna para parecer maior

2,5

Trancado há um ano no fundo da Imagem Filmes por conta da pandemia do COVID-19, finalmente o filme novo de José Eduardo Belmonte consegue estrear; Auto da Boa Mentira, com roteiro recheado de causos e baseado na prosa admirável de Ariano Suassuna, chega aos cinemas das cidades e capitais que começam a reabrir para o circuito cinematográfico de forma gradual. Talvez seja o filme certo para o momento exato, alguma leveza, uma certa ironia e muita pureza, como pede uma tradição "suassuana", de filmar os sentimentos mais simples e até ingênuos, mesmo dentro de contextos ditos nada louváveis.

Dividido em quatro blocos em narrativas separadas que nunca se encontram e são interligadas por falas do próprio Suassuna, sugerindo as matrizes de cada uma das esquetes, elas se desenrolam por pouco mais de 20 minutos cada uma e formam um painel. Esses tais contos, envolvendo mentirosos e seus novelos de armações, nos mostram pessoas que carecem de uma certa falta de malícia de não se perceber caindo nos atos que eles mesmo produzem, e se enredando nessas confusões perpetradas, tais como João Grilo, o personagem mais famoso do autor, como se todo brasileiro fosse refém de um excesso de esperteza e uma ausẽncia de sagacidade.

O problema do filme especificamente nem são as intenções narrativas de um dos nossos maiores mestres dramaturgos. Escrito por Célio Porto e Tatiana Maciel (que trabalharam juntos em Desculpe o Transtorno) com supervisão de João Falcão, o roteiro do filme não consegue se aliar à direção para criar uma unidade ao todo, servindo as histórias em coletivo quase como ambientes em separado de um todo sem organicidade, estética ou conceitual - independente das quatro serem obras defendidas por uma mesma racionalidade, parecemos estar diante de uma antologia de criação solitária, como se suas questões fossem tão libertas que seu caráter episódico se tornasse incongruente.

Como em todo longa-metragem que se desenha em episódios, ainda há o incômodo da comparação entre os mesmos, criando um ambiente de desequilíbrio até já esperado. Em Auto da Boa Mentira, a situação é agravada pela organização dos capítulos, do melhor para o pior, ou seja, a impressão de que o interesse segue em queda livre é constante, com suas historinhas indo em uma escalada descendente na ordem escolhida para as mesmas, da protagonizada por Leandro Hassum (em momento até surpreendentemente contido) até a de Cacá Ottoni (de Canastra Suja), passando por um certo lirismo com Renato Góes e Cássia Kiss.

Ainda que suas linhas mestras sigam uma mesma base dramatúrgica e essa seja a conexão autoral da obra, os episódios carecem da força estética com a qual Belmonte sempre primou em suas obras, aqui nunca chegando muito longe do que seria a hoje esquecida Comédia da Vida Privada, especiais televisivos dos anos 1990 adaptados da obra de Luís Fernando Veríssimo e dirigidos por Guel Arraes, o produtor aqui; não no sentido de seu conteúdo narrativo, mas da independência absoluta em suas unidades, como especiais de tv, suas aparências se confundem. O diretor parece deslocado em assumir um lugar desconhecido na sua filmografia e entrega uma produção sem qualquer autoralidade, o que mesmo em obras de larga escala como Alemão não tinha ocorrido anteriormente.

Com ao menos quatro outros projetos já filmados em processos diferentes de finalização e espera de lançamento (a continuação de Alemão, As Verdades, com Lázaro Ramos, O Pastor e o Guerrilheiro, com Johnny Massaro, além do aguardado Aurora, filmado há cinco anos), Belmonte surgiu há 20 anos e entregou trabalhos inesquecíveis que mudaram a autoralidade da filmografia nacional (como A Concepção e Se Nada Mais Der Certo), porém aqui caiu em armadilha de produtor realizando seu projeto mais destituído de identidade, ainda que se entenda o encanto de dobrar à obra de um gênio como Ariano Suassuna. Em que pese a necessidade de um filme como Auto da Boa Mentira para o público agora, coube a figura incrivelmente singela e divertida de seu autor original para produzir seus melhores momentos, em sequências de arquivo aí sim memoráveis.

Comentários (0)

Faça login para comentar.