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Críticas

Cineplayers

“Carros” de asas.

4,0

Antes que alguém se levante para dizer “A Pixar não é mais a mesma!”, é bom colocar os pingos nos Is. Aviões (Planes, 2013) NÃO é uma produção da Pixar. Antes disso, o filme foi financiado pela Disney Toons Studios, braço da companhia responsável por animações de menor orçamento e, em sua grande maioria, destinadas ao mercado de home vídeo (é daqui que saiu, por exemplo, a trilogia de desenhos da Tinker Bell), e distribuído nos cinemas norte-americanos pela Walt Disney Studios Motion Pictures, esta sim mais acostumada a lançamentos de maior peso, como A Princesa e o Sapo (The Princess and the Frog, 2009), Valente (Brave, 2012), e Detona Ralph (Wreck-It Ralph, 2012). No entanto, com a compra da Pixar pela Disney, é natural que o material publicitário dos filmes produzidos por esta última tente aproximá-los de marcas já conhecidas, testadas e aprovadas. Daí os trailers, cartazes e todos os demais apetrechos de Aviões forçarem uma vinculação com Carros (Cars, 2006). A associação remete o público a uma imagem da Pixar que, apesar de alguns recentes arranhões, ainda representa um alto padrão de qualidade. E quando essa expectativa não é atendida – e olha que Carros está longe, muito longe, de retratar o melhor da Pixar –, o sentimento de decepção é inevitável.

O enredo de Aviões é simples (simples demais, até). Dustin Voo Rasante (voz de Dane Cook) é um pequeno teco-teco pulverizador. Seu dia a dia é basicamente sempre o mesmo: espalhar grandes quantidades de germicidas por longas plantações na fictícia Propwash Junction, no meio-oeste americano. Mas ele quer mais. Mesmo sendo uma máquina concebida para voos lentos, curtos e repetitivos, Dustin sabe que tem habilidade e velocidade que o difere dos seus semelhantes. Em seus devaneios, ele se imagina na cola de possantes caças de guerra, disputando cabeça a cabeça o infinito azul do céu. Se a tentativa de imitar as acrobacias de Tom Cruise em Top Gun - Ases Indomáveis (Top Gun, 1986) é algo literalmente impossível, Dustin nutre o sonho de competir com os principais aviões do mundo inteiro, numa espécie de rali aéreo internacional, com ponto de partida em Nova York e passagens por Islândia, Alemanha, Índia, China, Himalaia e México. Para tanto, três ajudantes serão fundamentais: o frentista Chug (Brad Garret), a mecânica Dottie (Teri Hatcher) e o veterano combatente de guerra Skipper (Stacy Keach). A jornada obrigará o nosso protagonista a superar não apenas seus competidores, mas também uma improvável e irônica fobia de altura. Ao final dela, um novo Dustin estará pronto para desbravar outros horizontes.

Aviões é um desfile infindável de problemas. Um dos principais é falta de originalidade. Sua trama é rigorosamente idêntica a Turbo (idem, 2013), outra animação lançada há pouquíssimo tempo nos cinemas brasileiros (sem deixar saudades, diga-se). Troque um avião por uma lesma, e o rali aéreo pelas 500 Milhas de Indianápolis, e estaremos diante do mesmo filme. Além disso, por mais que o público se esforce, é impossível não se lembrar de Carros. A semelhança está em todos os lugares, desde os personagens (o velho Skipper e o amigo ingênuo mas boa praça Chug são os equivalentes ao que Doc Hudson e Mate representavam por Relâmpago McQueen), ambientações (a cidade interiorana de Propwash Junction podia muito bem se chamar Radiator Springs), e situações (o passeio romântico de Voo Rasante e Ishani ao redor do Taji Mahal é um repeteco da corrida de Relâmpago e Sally por entre cachoeiras e montanhas rochosas do meio-oeste americano). Com enredo e estrutura tiradas de outros filmes, é até mesmo difícil identificar aquilo que Aviões traz de realmente novo, de algo pra chamar de seu.

Outro aspecto em que Aviões falha grotescamente é sua opção de criar um mundo formado apenas por máquinas motorizadas. Do ponto de vista narrativo e dramatúrgico, não há nada errado em humanizar seres inanimados. As grandes fábulas, a mitologia grega e a literatura infantil sempre lançaram mão deste artifício. Aliás, nem é preciso ir tão longe assim. A própria Disney fez de A Dama e o Vagabundo (The Lady and the Tramp, 1955) dois cachorros apaixonados, de Robin Hood (idem, 1973) uma raposa, e de Bernardo e Bianca (The Rescuers, 1977), um casal de ratinhos aventureiros. A Pixar também é useira e vezeira neste departamento. Em Vida de Inseto (A Bug´s Life, 1998), Procurando Nemo (Finding Nemo, 2003) e Ratatouille (idem, 2007), vemos animais – formigas, peixes e ratos – agindo como humanos. Já na trilogia Toy Story, são os bonecos que pensam, falam e agem como nós. Em todas estas animações, o recurso de trabalhar com personagens antropomórficos foi aceito sem grandes alardes pelo público.

A razão me parece até mesmo simples: a humanização de seres inanimados dá certo quando se respeita a transição entre os dois mundos. Em outras palavras: animais e bonecos podem falar, pensar e rir apenas dentro dos seus respectivos universos. No momento em que eles ultrapassam essa linha divisória, há que se encontrar um artifício que torne crível a interação com os humanos. Um exemplo de transição bem sucedida e que não subestima a inteligência do espectador está em Rataouille, em que o ratinho Remy não se comunica com o cozinheiro por meio da fala (o que seria inaceitável), mas sim por meio de um complicado e engenhoso sistema próximo ao das marionetes. No extremo oposto, duas animações que erraram neste aspecto foram Carros 2 (Cars 2, 2011) e Up - Altas Aventuras (Up, 2009), cujos cães falantes eram duros de aceitar.

Mas neste quesito nada supera Aviões. O problema nem está tanto na inserção de alguns aviões – como o entregador de correspondência, os repórteres esportivos e as equipes de resgate marítimo – para “interpretar” personagens que, a rigor, deveriam ser entregues a humanos (ainda que isso incomode bastante). Mas quando o roteiro faz questão de criar uma Estátua da Liberdade em formato de avião, o limite do aceitável pelo público vai para o espaço. E o que são aqueles monges tibetanos motorizados que recebem o protagonista após o voo pelo Taji Mahal? Esse exagerado mundo de Aviões, onde não é permitida a entrada de humanos, provoca algumas questionamentos involuntários e instantâneos: como as máquinas se reproduzem? Quem são os donos das plantações pulverizadas pelo protagonista e o que é feito da colheita? Quem transmite e quem assiste às imagens do rali captadas ao vivo pela televisão? Esse emaranhado de perguntas, que poderia seguir indefinidamente, é fruto dessa incapacidade de Aviões de estabelecer uma adequada transição entre o mundo inanimado e o humano.

Mesmo assim, todos estes defeitos não teriam tanta relevância se o filme fosse ao menos divertido. Não é. A rigor, Aviões termina com 30 minutos de projeção, quando Voo Rasante é classificado para o rali aéreo internacional e os competidores partem para a volta ao mundo. Dali em diante (estamos falando de mais de 1 hora de filme), o roteiro se limita a acompanhá-los nas respectivas etapas da corrida. À medida que novas cidades vão sendo alcançadas, o filme vai se tornando mais e mais esquemático. A cada início de uma nova jornada, os locutores anunciam os perigos e desafios que virão pela frente (há uma clara e desnecessária preocupação do roteiro em situar geograficamente o público do paradeiro dos aviões, mencionando até mesmo a existência de um oceano ou de uma montanha ao redor). Ao final dos vários percursos, Voo Rasante revelará seu lado altruísta e transformará cada um dos correntes num amigo [há até uma citação implícita de A Felicidade Não se Compra (It´s a Wonderful Life, 1946) para reforçar esta ideia]. Essa linha irritantemente reta na qual a história de se desenvolve, faz com que o público perca rapidamente o interesse naquela disputa e, consequentemente, no filme de um modo geral.

Para completar o clima geral de insatisfação, some-se os diálogos rasteiros, sem inspiração ou graça, sequências que não cumprem qualquer função na trama (a tentativa de decolagem noturna de Skipper), e a eterna visão estereotipada que os americanos tem dos estrangeiros (para os habitantes da Terra do Tio Sam, os alemães bebem, os italianos falam alto, os mexicanos ainda fazem serenatas ao som de maracas, e os indianos rezam). Justiça seja feita, dessa vez o Brasil escapou ileso. Na versão lançada nos cinemas nacionais, a personagem feminina Carolina (dublada por Ivete Sangalo), ainda que natural da Bahia, não é vista com um cacho de banana na fuselagem (na versão lançada internacionalmente, a nacionalidade desse avião é franco-canadense).

A indústria do cinema de animação é altamente competitiva. A briga sempre foi de cachorro grande, e se tornou ainda mais acirrada com a entrada novos players nesse mercado, vindos de diferentes partes do mundo (lembrem-se dos filmes de Myazaki, Marjane Satrapi, Ari Folman e Sylvian Chomet). Dentro do cenário americano, é inegável que a Pixar estabeleceu um outro patamar de qualidade. De uma certa forma, ela obrigou os outros estúdios a correr atrás do prejuízo, e a desenvolver seus departamentos criativos e técnicos deste setor. O que se quer dizer de tudo isso é que, considerando o atual padrão das produções do gênero, é difícil ver algo de elogiável em um filme como Aviões. Talvez se fosse lançado direto para o mercado doméstico, seus evidentes defeitos não ficariam tão à mostra e o resultado final seria mais palatável. No entanto, no momento que o estúdio opta por distribui-lo na arena das telas grandes, o nível de exigência passa a ser outro. E, neste sentido, Aviões se torna um filme indefensável.

Comentários (4)

Alexandre Koball | domingo, 06 de Outubro de 2013 - 12:51

Já sai em home video em novembro. Na verdade o lançamento para cinemas foi apenas para arrecadar uma graninha extra.

Raphael da Silveira Leite Miguel | domingo, 06 de Outubro de 2013 - 15:55

É o tipo do filme feito só pra arrecadar uma graninha extra sem muito esforço, daqueles que já deveria sair direto em home video, exatamente como o Koball disse.

Pegaram carona do sucesso de Carros pra ludibriar as pobres criancinhas.

Renan Fernandes | domingo, 06 de Outubro de 2013 - 23:01

Nossa qual vai ser o próximo meio de locomoção que ganhará vida? Trens, barcos, bicicletas?
era de se esperar que seria mais um fiasco...

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