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Babe - O Porquinho Atrapalhado

(Babe, 1995)
6,9
Média
540 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Narrativa fabular noventista

7,5

O fabulista grego Esopo é, certamente, em definição sem titubeios, um dos contadores de histórias mais famosos da humanidade. Com bagagem adquirida graças às suas viagens pelo mundo, passeando ao redor do globo por Oriente Médio, Egito e Babilônia, o célebre escritor nascido em Atenas forjou contos que até hoje são lembrados. O legado por ele deixado, inquestionavelmente, passou a permear a literatura, seus ramos e, de igual modo, o cinema. Em meados dos anos 90, o também conhecido pela habilidade de esteta na condução de insanos blockbusters, mostrava desenvoltura na escrita de um roteiro aparentemente minimalista para Babe - O Porquinho Atrapalhado. George Miller, em parceria com o diretor Chris Noonan, redigia uma história à primeira vista adocidada demais, mas que no fim das contas se mostrava um tapete a encobrir algo muito valoroso.

Por debaixo dessa fina camada de tecido, evidente na superfície, um filme formatado em base facilmente assimilável pelo grande público e perfeitamente catalogável na estante do cinema recreativo. O apego às personagens é quase instantâneo. Muito embora o filme tivesse tudo pra soar datado em dias atuais, é um projeto que consegue, por intermédio da técnica dos animatronics, – aqui muito bem trabalhada por um mestre no ramo, nosso querido Jim Henson (criador dos bonecos Muppets) – demonstrar-se ainda plausível em sua estética a prezar mais pela artesanalidade do que propriamente por um recurso muito presenciado na contemporaneidade do audiovisual, aquele do mergulho em malhas gráficas. Na época, as mentes criativas envolvidas no longa trabalhavam com o que tinham e se viravam bem com o que possuíam ao alcance das mãos, sabendo aproveitar cada recurso disponível num ano em que a tecnologia visual ainda engatinhava.

Ao pensar sua decupagem, Noonan, ainda que em direção longe das mais inventivas, preza por recursos com a câmera que acentuem o tom fabulesco. Ora permitindo a intrusão de uma trilha bem lúdica, com notas a mesclar entre o suave e o mais acentuado (antecipando, com isso, momentos de tensão e de respiro), ora enquadrando em close-ups os partícipes de sua aventura. Usufrui também do contra-plongée a sugerir posições de superioridade dos humanos, inicialmente maus, em relação principalmente ao doce e compassivo Babe. De fato, uma relação empática vai se desenrolando entre o porquinho e o espectador e entre o bicho rosado defronte aos demais companheiros de fazenda. Todos os que orbitam o protagonista suíno têm um desenvolvimento relativamente satisfatório. Destaco dois, à exceção dos que servem ao riso, especialmente chamativos por catalisarem o mote do enredo.

Tanto o pato Ferdinand quanto a mãe por criação de Babe (a simpática cadela Fly), dado o trágico destino, inclusive destacado em linhas de diálogo, da progenitora biológica, servem de mola propulsora às metáforas propostas. A principal delas, da qual subdividem outras, é a que fala sobre destino e pertencimento. Órfão e convivendo com bichos naturalmente distintos de sua característica animal, Babe se vê perdido, sem rumo. Sincronicamente, com uma crise de identidade também. Ao passo que Ferdinand demonstra queixa por querer exercer o papel destinado a um galo, missão na qual falha miseravelmente. Não acorda seus donos e ainda deixa o bicho da crista todo irritado. A maneira como Miller e Noonan articulam a ambientação bucólica com o expressar desses sentimentos de desencaixe introjetados nas personagens é muito acertada. Os efeitos práticos, as casas que parecem maquetes, tudo é muito bem articulado a uma visão muito mais infantil daquele microcosmo rural do que de fato a uma perspectiva objetiva que se leve a sério. Acaba sendo um filme a fincar bases no limite entre a caricatura e a seriedade. Isso cria um híbrido cheio de vigor e, há de se dizer, frescor.

Nesse universo micro, aparentemente saído de um livro infantil enfeitiçado que acabara de ganhar vida, os animais são claras metáforas para mostrar como as relações humanas se dão em âmbitos diversos. Dado momento, uma vaca diz para Babe que cada animal deve aceitar aquilo que lhe foi designado por instinto. Levando para um olhar transcendente, logo notamos que os animais ali são meros pretextos a ocultar um subtexto. Subtexto esse que, por sua vez, encarrega-se e cumpre com destreza a tarefa de nos ensinar lições, como a que preconiza o fato de sempre lutarmos pelos nossos sonhos. Também a que nos deixa clara a ideia de que família é algo relativo. Sendo ela de sangue ou não, o que importa, em suma, é estar acolhido num seio que nutra amor reciprocamente.

Estruturalmente, toda a mise-en-scène é pensada objetivando parir um filme fragmentado em pequenos episódios. Cada pequeno bloco do filme conecta-se com os demais preservando uma unidade e, isocronicamente, uma moral incutida. As transições entre esses segmentos são feitas de maneira muito alusiva ao encerramento de um desenho animado, onde um círculo negro vai se fechando ao entorno do objeto cênico em destaque. É lindo notar como o filme opera nessa aura leve, ao mesmo tempo em que preserva um ensinamento ao final de cada pequeno arco que se abre e logo se fecha. Não obstante se feche, quando o ato final é descortinado, deparamos-nos com todas as personagens em relação de propinquidade, a fim de testemunharmos a síntese moral da fábula proposta por Noonan em clímax paradoxalmente silencioso.

Sob silêncio sepulcral, Babe se assume e se prova, finalmente, como um cão pastor. A plateia, atônita, assiste sem acreditar o feito do animal e, além, o feito compartilhado entre criatura e criador. O “dono” de Babe, o Sr. Hoggett, vai de desacreditado a campeão em segundos. Babe, por sua vez, encontra seu espaço de redenção em tempo posterior a aquele de difícil aceitação, de preconceito e exclusão sofridos.

Afora seus problemas de ritmo por um ou outro segmento episódico descolado do todo organicamente nítido, Babe faz por onde num ano em que, pasmem, concorrera na categoria de Melhor Filme do Oscar, onde postulantes fortíssimos à indicação ficaram de fora – a saber As Pontes de Madison, como exemplo. Uma fábula hábil em evidenciar que, definitivamente, não existem pontos finais para quem almeja. O comodismo e o conformismo nunca foram uma opção. Rebele-se, com moderação, mas rebele-se, assuma as rédeas daquilo que mira. Ter um norte e segui-lo. É sobre isso, afinal.

Comentários (4)

●•● Yves Lacoste ●•● | terça-feira, 29 de Setembro de 2020 - 12:58

Tem gente que fala que a indicação não foi merecida em detrimento de obras mais marcantes que ficaram de fora a Melhor Filme. Tá, é um filme infantil simples, mas esconde em seu roteiro uma revolta contra uma ordem social estabelecida vigente: a do porquinho contra o que é inaceitável a todos daquela fazenda.

Marcelo Queiroz | terça-feira, 29 de Setembro de 2020 - 16:53

É bem isso, Yves! E, Igor, muito obrigado. De verdade. Parabenizo você também pelo teu texto para o Também Somos Irmãos, de uma escrita ímpar.

André Araujo | quinta-feira, 01 de Outubro de 2020 - 10:19

Aí um filme nostálgico meio "a prova" de revisões.

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