A imagem de uma mulher que busca vingança em meio a um mundo desenhado por homens e para homens, onde até a coreografia da violência já tem seus passos bem marcados, é simbólica em Bailarina (Ballerina, 2025). A partir dela, o filme investiga o quanto esse universo pode ou não se reinventar ao ser conduzido por uma nova protagonista. Eve, vivida por Ana de Armas, é mais uma sobrevivente desse império masculino e violento, não exatamente por escolha, mas por imposição de uma narrativa que se alimenta da dor como gatilho e do confronto como resolução. Ainda assim, há algo de fresco em sua jornada, como se, mesmo nos trilhos gastos da saga John Wick, surgisse aqui uma vontade contida de experimentar uma nova melodia no meio da balada barulhenta.
Se nas mãos de Chad Stahelski a franquia se consolidou como espetáculo visual de precisão coreográfica e ambientação quase mítica, em Bailarina há uma tentativa de manter esse ritmo sem perder a chance de adicionar uma nota diferente. E essa tentativa, vale dizer, nasce já atravessada por inseguranças: a troca de comando pela figura de Len Wiseman – diretor de carreira oscilante e longas esquecíveis – logo se prova problemática, com relatos de cenas de ação desastrosas na montagem inicial. A solução, irônica e reveladora, foi chamar Stahelski de volta para conduzir essas passagens em refilmagens.
Assim, o longa se molda na colisão entre estilos, entre a narrativa claudicante de Wiseman e a ação eletrizante que Stahelski sabe entregar. E o que sobra dessa soma? Um derivado que, apesar de mancar na originalidade, consegue caminhar com dignidade dentro do universo ao qual pertence. Bailarina é mais eficiente do que a minissérie Continental, que tentou ampliar os bastidores desse mundo priorizando tramas e diálogos, mas esvaziou o impacto visual e físico que se tornou a assinatura da franquia. Aqui, pelo menos, há consciência de que o motor desse universo é a ação — e é por ela que a narrativa segue pulsando, mesmo que em ritmos diferentes. Mas a grande tensão do filme está justamente entre o desejo de construir algo novo e a tentação constante de repetir fórmulas.
A protagonista é apresentada com uma trajetória que remete diretamente à de John Wick: trauma, orfandade, treinamento severo, quebra de regras e sede de vingança. Tudo ecoa o já visto, e as brechas para que Eve encontre sua própria voz são, muitas vezes, fechadas antes mesmo de serem exploradas. Personagens e possibilidades que poderiam oferecer caminhos mais singulares — como a figura da irmã ou a criança que surge no percurso — são rapidamente descartados, como se o roteiro não confiasse na força de uma ruptura mais radical. Contudo, Ana de Armas se agarra ao que tem e transforma Eve em uma presença marcante. Não há a frieza controlada e mítica de Wick, mas há vigor, vulnerabilidade e improviso. Sua personagem apanha, hesita, calcula mal — e por isso mesmo, parece mais humana. Em um universo onde tudo costuma ser implacável, essa humanidade é um respiro.
E, mesmo que o filme insista em cercá-la com aparições de Keanu Reeves que em nada acrescentam à trama (e mais parecem um lembrete desconfiado de que ela não pode carregar sozinha o legado), Eve sobrevive. Literal e simbolicamente. Visualmente, o longa não foge do que a série já consagrou: cores marcadas, iluminação expressionista, espaços estilizados onde cada combate parece parte de um espetáculo de dança contemporânea. Mas há lampejos de novidade. A sequência com granadas, por exemplo, e o uso do lança-chamas, são delírios criativos que renovam o prazer visual de assistir a essa coreografia da destruição. No fundo, Bailarina não quer ser um reinício nem uma revolução. Ela sabe que existe sobre uma base consolidada, e decide não chutá-la — apenas dançar sobre ela, com movimentos ligeiramente diferentes. O resultado é um filme que não arrisca muito, mas também não trai o que lhe deu origem. E se não reinventa a roda, ao menos dá sinais de que há outros caminhos possíveis para se seguir nessa estrada cheia de sangue, suor e balas.
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