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Bang Bang

(Bang Bang, 1971)
8,0
Média
103 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A avacalhação metódica marginalíssima de Bang Bang

10,0

Bang Bang. Cinema Marginal. Um filme que viria a preconizar um combate às convenções culturais ortodoxas sejam elas políticas ou estéticas. Uma severa crítica ao institucionalismo e a histeria social da classe média, assim como a apreciação a liberdade sexual. A contestação artística em busca de uma liberdade total da forma. Um tropicalismo cinematográfico altamente esculhambatório por excelência.

Apesar de que o filme possa ser caracteristicamente analisado como desconstrutivo, o longa viria a possuir um forte aspecto formal em sua filtragem. Andrea Tonacci preconiza exatamente o aspecto formal para desestruturar a narrativa em uma miscelânea dicotômica entre o formalismo estético e o radicalismo de conteúdo. Com planos-sequências bem estruturados diante duma excelente fotografia que extrai o máximo das ambientações, sejam elas internas ou externas, e a não, ou pouquíssima, utilização da “câmera na mão” ajuda a caracterizar a parada toda, nesta última questão indo na contramão do cinema novo que era uma importante vertente do cinema nacional à época. Nisso o conteúdo era pelo total escracho. Bandidagem e fuleiragem.

O filme trata da história duma pequena quadrilha de excluídos, e seu convívio nada convencional – esculachatório até o talo – é mostrado de maneira ainda menos usual e improvisada. Exatamente porque uma das forças motrizes de Bang Bang é a construção do próprio método durante o filme. Numa maior preocupação com o processo do que com o produto final.

O tom irreverente de avacalhação é explicitado de maneira constante de várias formas dentro de sua duração como, por exemplo, a conversa inicial (extraordinária) no táxi. Hilariante pelo tom de deboche e intrigante pelo aspecto metacinematográfico crítico envolvido que, a meu ver, traz uma idiossincrática possibilidade metafórica. Esta seria a de que o TAXISTA representaria o esquema pré-industrial cinematográfico brasileiro geral do período (alguns artistas e críticos envolvidos) – que não conseguia compreender e, principalmente, aceitar toda uma gama de características do PASSAGEIRO. Onde este último é um exemplificatório análogo do próprio cinema marginal, que procura pôr em prática sua vontade intrínseca de existir e não se preocupa com amarras sociais e estéticas. Que o Tonacci não meteu propositalmente esta maçaroca que inventei acima eu tenho certeza, mas que ele não deixaria de sentir esta putaria toda dentro de si e de sua produção? Sem dúvidas. Sei disso porque anos depois de escrever este material, num debate como o próprio diretor, o indaguei sobre a questão, e ele me afirmara que assim funcionava. E faz um puta sentido. O país passava por um período conturbado e o cinema refletia isso, com diferentes estratégias diante das variadas vertentes cinematográficas. Fosse numa pegada de crítica social mais frontal, tal qual os artífices do cinema novo, ou nas figurações pertencentes ao escárnio brutal do cinema de invenção. Cinema marginal. O avacalho de si, por si e ao redor de si. Respirando e vomitando sobre aquilo que se cerca. A nauseabundice cinemesca.

Alguns momentos a serem refletidos, também, são aqueles nos quais as câmeras aparecem propositalmente (escreve o termo animal Ted) numa brincadeira de Tonacci com a própria linguagem. Como na cena em que Paulo Cesar Pereio se barbeia com a máscara de um macaco, e vira-se olhando para a câmera. Percebo aqui uma noção do diretor em expor seu modus operandi em uma espécie de diálogo representativo com o espectador. E creio que Tonacci se aproveitara desta oportunidade para mostrar mais uma de suas facetas metodológicas de caráter rebuscado e combativo à algumas formas de estética vigentes no cinema brasileiro do período. Mais uma deliciosa frescura. UM ADENDO GROSSEIRO. Uma edição feita por mim agora anos depois. Escrevi este texto originalmente em 2011 e em 2017 fiz uma edição (das várias que inventei pela década), já que antes não tinha a mínima ideia do que diabos era uma quebra de quarta parede na terminologia da coisa, por isso rebusquei o troço. FIM DO ADENDO GROSSEIRO. A tal quebra da quarta parede de Tonacci. E uma das mais belas já filmadas. O que ela representa: "Sou um escroto e daí? Este país também o é." E foda-se.

A sonoridade transmitida seria de uma total consciência do diretor para gerar uma profusão sintomática de sons com a intencionalidade de causar uma confusão no espectador em uma analogia ao cinema brasileiro e à política do país (pensou foi porra que o diretor pensou nisso, mas o avacalho de tudo rima perfeitamente). Uma analogia esquizofrênico-emocional. A trilha sonora irreverente traz um tom de organicidade paradoxal com as imagens no que tange a esta confusão que eu já citei. Percebemos uma conjuntura de imagens e sons que a princípio parecem desconexas, mas, propõem-se (acidentalmente?) a ser um mosaico sociocultural representativo do país. Respondo a mim mesmo à posteriori da escrita inicial. Não havia esta preocupação tácita frontalmente. Discordo de mim mesmo. Do Ted. Morroia. Mesmo em discordância, quando a coisa é enxergada dentro de uma perspectiva histórica, é percebido (nova e completamente) um mal-estar que era regurgitado a todo momento com fúria e esculhambação mediante o Brasil que se apresentava. Ah, isso é um certeza. E dentro de uma suposta confusão, esta era bem concatenada, isso sim. Sim, mas resumindo, que negócio era esse? Tonacci impôs a desordem política e cultural que enxergava em seu cinema através da dicotomia entre forma e tema, assim como seu filme sendo sensorial pra cacete. Onde os devaneios e perambulações existentes na obra servem a ela como tragicomédia nacional em processo.

Diante da queda das ilusões frente a truculência rechaçatória por parte do governo federal diante do cinema, Bang Bang demonstra sua face escrachada frente às adversidades encontradas. E, além disso, acredito que toda a exacerbação da quebra de paradigmas estéticos possa soar também como uma brincadeira em forma de uma confusão metaforizando o período político e suas violentas nuances – intencional ou não, não interessa. É avacalho, e nele tudo pode. Tendo na população brasileira a carga sintomática da confusão. O peso do destroço censor e moral. Mas, é bom salientar que o país era ainda mais conservador. E nos seios familiares isto era deveras proeminente nos mais variados casos. Filmes como Bang Bang eram masturbações deliciosas para alguns artífices, mas como um material desses deveria ser compreendido pela galera em geral? Esta turma em parte conservadora, em parte presa sexualmente, e que curtia uma putaria às escondidas. Tonacci afirmara – na mostra Cinema de Garagem, evento de cinema underground ocorrido aqui no Ceará em julho de 2014 – um caso específico onde seu filme estava em exibição (1971) e tivera sessão interrompida por falta de público. O quórum mínimo seriam de 8 pessoas. Então ele pagou alguns ingressos para uns garis que por ali estavam trabalhando, assim os caras assistiram ao material a pedido do diretor e adoraram toda a putaria do avacalho que o filme assim proporciona. Pra se receber um avacalho é necessário oportunizar espaço para o próprio. É uma opção do caralho.

Os personagens. Desde sua explosão a vertente marginal já demonstrava seus personagens como seres marginalizados como em Bandido da Luz Vermelha (1968), Matou a Família e foi ao Cinema (1969), além do próprio Bang Bang, citando aqui algumas das mais proeminentes obras. A dualidade artística clássica entre bem e mal é metamorfoseada como uma espécie de conjunto estrutural de personagens marginalizados em Bang Bang. Em vista: um pistoleiro cego, um travesti e outras figuras estranhas à (e excluídas de) nossa sociedade de outrora, e que no caso do travesti o diretor mostra audácia ao retratá-lo diante de todos os intensos preconceitos sexuais que isto poderia acarretar. Mas era isso que Tonacci queria... O choque. Atitudes como uma força de expressão que buscava exatamente a liberdade criativa, sem se preocupar totalmente com o aspecto mercadológico do cinema. Porém paradoxalmente querendo ser visto (?). Porém uma porra. Nova discordância comigo Ted. A despreocupação com modelos vigentes não acarreta mera punhetagem para enfiar o filme na academia. Todo autor quer ser visto, quer ter sua arte exposta. Tonacci assim o queria, mas de forma escrachada. Numa grande ode ao afamado – e deveras citado – AVACALHO.

Por fim Pereio (em estupenda personificação). Tonificar seu personagem, que perpassa o filme inteiro em caminhadas e canções, significaria demonstrar que em ambos os momentos ele está sozinho, o que simboliza a solidão do ser marginal. Dar voz a estas criações é uma intenção chave para o diretor diante de sua ideologia rebelde a procura de uma transformação inacabável.

Tonacci. Dane-se. Cinema.

Um Frankestein que fresquei em cima do mesmo por várias vezes.

2011, 2014, 2017, 2020. Taí. 

Texto da série Clássicos Brasileiros

Comentários (2)

Gian Couto | terça-feira, 01 de Setembro de 2020 - 23:30

Esse é ouro.

Ted Rafael Araujo Nogueira | quinta-feira, 10 de Setembro de 2020 - 21:26

Dos maiores exemplares do cinema nacional. Experimental, escroto e furioso.

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