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Críticas

Cineplayers

Olhares periféricos.

6,0
Não é novidade que Pedro Costa, cineasta português mundialmente reconhecido pelo retrato de comunidades marginalizadas e fantasmas dos avanços colonialistas, é um dos nomes mais influentes para a nova geração do cinema brasileiro. Uma parcela significativa da produção recente, especialmente a dedicada ao circuito de festivais, se propõe a observar nossa realidade social com um misto de frontalidade e afeição diretamente inspirado pela obra do português, emulando desde as características formais mais evidentes em seus filmes, como os planos densos e extensos a proporem-se como híbridos entre o documental e a invenção, até procedimentos metodológicos da produção de Costa, conhecido pelo contato prévio estabelecido com bairros e comunidades filmadas, imbuído de uma sensibilidade extremamente aguçada e fundamental para a produção de um olhar antropológico distante do fetichismo. 

Os principais nomes dessa geração não vêm do eixo Rio-SP, historicamente o centro da produção cinematográfica do país, mas de estados como Minas Gerais (Affonso Uchôa, André Novais Oliveira) e Distrito Federal (Adirley Queirós) – alguns lembrariam de Pernambuco, mas ainda estamos falando de bom cinema. Filmes dentre os mais interessantes produzidos aqui nos últimos anos, como o recentemente em cartaz Arábia e o ainda inédito no circuito Era uma Vez Brasília, são essenciais justamente por absorverem estas referências para nortear a construção de uma linguagem particular, com base em questões políticas e estéticas da realidade do país. Como Nelson Pereira dos Santos e Glauber Rocha no passado, são cineastas que hoje registram em imagens as principais questões que brotam em diversas comunidades brasileiras, oferecendo mais que discursos socialmente engajados, mas sim colaborando para a construção de um olhar somente possível através de uma arte relevante em sua própria forma. 

É também de Minas Gerais que chega ao circuito Baronesa, filme vencedor do prêmio Aurora na Mostra de Tiradentes em 2017. Um trabalho naturalmente importante no mercado nacional pela singularidade da produção: em tempos de #TimesUp e campanhas reivindicando igualdade em todas as esferas, o filme de Juliana Antunes se impõe como um projeto ao mesmo tempo atento às questões sociais e de gênero, com uma equipe composta por mulheres em todas as escalas da produção, além de duas protagonistas femininas a ocuparem o centro da narrativa. Pela proximidade com o também vencedor do prêmio Aurora, é como se a obra de Juliana desse sequência a A Vizinhança do Tigre (comentei o filme aqui) compartilhando um mesmo processo de pesquisa e registro e um olhar semelhante para as comunidades periféricas que filmam, nas quais a convivência diária com a violência rege o cotidiano das personagens, acrescentando agora o ponto de vista feminino.

Como no filme de Uchôa e no cinema de Costa, o tempo dedicado a conviver com o objeto filmado auxilia na construção de uma intimidade outra com as personagens retratadas e a favela. Se A Vizinhança do Tigre acompanhava um grupo de garotos lidando perigosa e ludicamente com a violência, absorvendo-a em seus movimentos cotidianos através de jogos e brincadeiras até atingir ações mais duras como o consumo de drogas, Baronesa por sua vez retrata questões como a maternidade, a sexualidade feminina, traumas com a violência, deveres domésticos e o trabalho, enquanto os homens – maridos, amigos – cumprem seu destino na guerra do tráfico que circunda os cotidianos das mulheres da periferia. O mais notável é como assimilamos este entorno a cada sequência, a cada conversa que apresenta novos dados à história de vida dessas mulheres – até finalmente chegarmos a uma das cenas mais controversas e comentadas do longa, quando a espirituosidade de um bate-papo qualquer é interrompida por uma troca de tiros a pouco metros do espaço onde filmam, levando as atrizes e a própria cinegrafista a reagirem impulsivamente e correrem em direção ao interior da residência. 

Quando a câmera desaba ao chão durante esse trajeto, resultando numa “quebra de parede”, num artifício de inserção ao instante da ação, a cena em questão relembra a urgência da temática mas também ilumina certas limitações da obra, que ao contrário de outras aqui mencionadas encerra sem uma proposta formal efetivamente singular, uma construção de grande impacto que traduza nas imagens aquele cotidiano de violência permanente, apostando para este fim num recurso facilitador de indução ao choque. Resta a banalidade do real no que ela tem de mais revelador – até mesmo sobre a própria insuficiência. De todo modo, ao que se espera de um filme capaz de remeter a cinemas de tamanha força, a experiência ainda é mais do que instigante e necessária enquanto exercício de olhar para o que geralmente se evita ver.  

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