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Críticas

Cineplayers

Conflito de interesses.

1,5
Tem um tanto de metalinguagem na obra Baseado em Fatos Reais, livro escrito por Delphine de Vigan adaptado para o cinema por Roman Polanski e Olivier Assayas, dirigido pelo primeiro e cuja protagonista é uma escritora também chamada Delphine. A escritora deu à luz outra, então não é muito estranho que Polanski também quisesse bebericar dessa fonte ao transpor sua relação com a imprensa e com a opinião pública em tempos de redes sociais para o mesmo produto. Metaforizando as relações de seus artistas responsáveis para com o mundo a sua volta, é um alívio que a obra de audiovisual surgida do material ainda consiga minimamente divertir e gerar alguma discussão. Se as discussões são ou não intencionais e se a intenção era apenas divertir não se sabe, mas levando em consideração a enorme quantidade de problemas existentes nesse filme, ser divertido é uma vitória que merece ser comemorada, ainda que por pouco tempo.

Na primeira cena do longa, é o lançamento do novo livro de Delphine Deryeaux, uma escritora famosa que consegue subir alguns degraus com seu novo trabalho, um grande sucesso. Nessa cena ela se encontra pela primeira vez com Elle, e quando a lente de Pawel Edelman captura o rosto de Eva Green, nada além da verdade vem a tona. E nesse caso a verdade é a pegadinha do filme, o chamado 'plot twist', que para qualquer cinéfilo amante de cinema de gênero percebe facilmente até pela intenção e sonorização da cena que o quadro de visão mudou, e a partir daí o filme escolhe um lado: ele vai debochar dessa charada a duração inteira. Com uma trilha-sonora batida e bem ordinária, o filme abraça seu desdobramento e esfrega na cara do espectador o óbvio final a cada 5 minutos. Se esse conceito tinha algum interesse ainda que mordaz, ele se esvai ao perder cada vez mais a sutileza e abençoar a decisão de fazer desse artifício algo tão ridículo; o filme cai na armadilha que ele mesmo criou. 

Como já dito no primeiro parágrafo, há ainda a intenção do diretor de se vingar dos ataques que sofreu, da crítica e do público. Raramente isso dá certo em termos de narrativa e aqui não é muito diferente. O filme mostra a relação entre essas duas personagens, da amizade inicial até um quadro de dependência mútua, cujo estopim são os ataques que a estrela da literatura começa a sofrer na Internet, lugar que ela por sinal nem frequenta. Sua fã transformada em amiga irá fazer de tudo para ganhar sua atenção, inclusive rebatendo ataques no Facebook. O fim do filme também é sintomático para percebermos o narcisismo de Polanski nessas passagens, e em como essa construção parece desnecessária e infantil. Ao deixar sua vida pessoal influenciar no seu trabalho de contador de histórias, o diretor de O Pianista e Chinatown perde a mão e se deixa levar por um revanchismo despropositado e sem qualquer função narrativa maior.

Para deixar sua narrativa ainda mais "divertida", o filme investe em um sem número de homenagens a suspenses do passado, e vemos enfileirados Rob Reiner, David Fincher, Barbet Schroeder e François Ozon passando diante de nossos olhos com referências tão fáceis de reconhecer que a impressão é que o filme resolve embarcar na paródia, provocando risos de nervoso e situações constrangedoras. Mas nenhum desses diretores é mais emulado que Brian DePalma. Ainda que talvez não esteja pendurado numa obra específica, sua cara parece estar em todos os lugares para onde olhamos no filme mas pontilhada por toda a narrativa (ainda que exatamente o último filme de De Palma tenha inúmeras semelhanças com esse novo Polanski), e o filme é tão reverente às suas "homenagens" que as citações em determinado momento passam a aborrecer e demonstrar o óbvio: a total falta de imaginação do projeto.

Para além da exagerada semelhança entre o filme e suas inspirações, para além da repetitiva escalação de Eva Green como alguém desequilibrado, para além de ser um novo capítulo fraco na filmografia de Polanski, o que esse longa tem de diferenciado em suas deficiências em comparação com outros escorregões do diretor é o fato de não conseguir vislumbrar uma diferenciação do que está na tela para um resultado diferente, a não ser que tido o projeto fosse refeito. Bola fora de direção, do inacreditável roteiro a quatro mãos, a parte técnica que nunca parece tentar fazer alguma diferença, o trabalho de Emmanuelle Seigner que não tem qualquer força (e pela qual ela não tem nenhuma culpa), Baseado em Fatos Reais é uma sucessão de erros que não faz qualquer sentido para nenhum dos envolvidos. Como um coletivo de tanto respeito pode errar tão completamente?, tendo sobrevivido ao desastre apenas a cara pop sem vergonha do produto final, é uma pergunta no qual apenas o choque entre os vários interesses diferentes de rumos para o projeto chega perto de responder.

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