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Bastardos Inglórios

(Inglourious Basterds, 2009)
8,6
Média
1983 votos
?
Sua nota

Críticas

Cineplayers

Um filme pelo cinema.

9,0

Existe uma anedota (talvez seja verdade) de que Quentin Tarantino era o mais entusiasmado espectador da premiére de um filme seu em Cannes, anos atrás. Há quem diga que Quentin Tarantino assistiu a todos os filmes da locadora em que trabalhava quando era mais novo e que depois disso ele decidiu fazer seus próprios filmes. E que a partir de tudo que viu ele montou sua visão de cinema, inundando suas obras de referências populares ou sofisticadas de filmes de outros.

Que cineasta não ri, ou chora, ou despreza seus próprios filmes, mesmo que em silêncio? Que diretor não desenvolve seu olhar de cinema através dos olhares que viu ao longo da vida? Que mestre, realizador medíocre ou operário-padrão nunca terá tido a vontade, ao menos uma vez na vida, de fazer o mais metalingüístico dos filmes, simplesmente louvando tudo que o levou até aquele ponto? Deixando de lado as anedotas, as especulações e os fatos, o que sobra para muitos em Quentin Tarantino é a figura do nerd que deu certo sendo cool, sabendo falar ao público, sabendo ser ele mesmo o público antes de qualquer outro – e talvez por isso seja capaz de se divertir mais que ninguém com seu próprio trabalho. Na verdade, era isso que sobrava em Quentin Tarantino, pois a partir da estréia de Bastardos Inglórios, a única imagem capaz de ser atrelada à do diretor norte-americano é a de um autor. Finalmente!

O mundo que aguardava “o novo filme de Quentin Tarantino”, como ele mesmo costuma vender, seria o mundo que veria um produto lançado com uma marca visual, um estilo meio sem estilo, mas que unindo todos os estilos ao mesmo tempo, uma miscelânea de informações bem articuladas num conjunto que formava uma boa / excelente / grandiosa / primorosa narrativa cinematográfica. Quem assistir ao primeiro capítulo de Bastardos Inglórios encontrará o tempo. O tempo encontra Tarantino e ele o encontra de forma absoluta. No final da matemática estranhamente paradoxal da obra do diretor até agora - e do autor a partir de então -  parece mesmo que o tempo foi feito para Tarantino.

O “Era uma vez... na França tomada pelos nazistas” carrega o pensamento para um passado definido, mas não somente para uma reconstrução do mesmo; o que se vê em tela é um recorte de um momento e nada mais importante que recortá-lo de modo correto – e livre. Um coronel alemão visita uma casa no campo, de uma família simples constituída por pai e três filhas, de nenhum bem, nenhuma distração. No quadro se erguerão durante vários minutos dois personagens diretos: o pai amedrontado pela figura do invasor; e o coronel cortês, sempre sorrindo e buscando o caminho para chegar ao seu ponto. Por muito tempo, o trato estabelecido com o público será de apenas observar aqueles dois personagens, entender suas palavras, calcular suas reações, esperar. Aí está assinalado que Tarantino é outro, um diretor hoje capaz de manter um diálogo entre dois personagens sentados simplesmente, sem que referências pipoquem, músicas pop estourem na tela ou planos espetaculares sejam vislumbrados. Por muito tempo em tela, Tarantino é somente mestre de sua função, a criação de uma mise en scène inteira.

Falar em mise en scène ao falar de Bastardos Inglórios parece mesmo uma obrigação, não somente pela observação de uma construção mais cautelosa e segura por parte do diretor, mas por ele mesmo fazer essa observação em cena. Tarantino atesta sua admiração pelo cinema europeu em determinado momento do filme, o situa na França (e boa parte da idéia de seu desfecho também), no cinema francês, na valorização do autor pelos franceses. Bastardos Inglórios se revela tão deslocado de ser uma produção de um diretor norte-americano, que é posto como um filme poliglota, falado em quatro línguas ao todo, como se quisesse abraçar uma globalidade de expressão. O filme adquire vontade, se desenvolve em linguagem e passa a ter uma assinatura, fazendo pensar que hoje em dia seria possível Truffaut, Bazin, Chabrol e Godard também encaixarem Tarantino no grupo restrito de uma tal “Teoria do autor”. Só que a obra não é simplesmente teorizada, é praticada como verdadeira e, com o perdão da palavra, Tarantino amadurece.

Citar o tempo, a linguagem, o fato de haver menos pirotecnia faz supor que o cinema de outrora foi deixado de lado. O caso é que não parece ser um autor buscando outro caminho, mas sim um autor capaz de fazer um caminho menos de “outros”, mais “seu”. Para tanto, ele divide seu filme em vários, novamente, como um livro capitular, mas que dessa vez não pretende contar uma saga e sim retratar uma visão, ainda que de muitos olhares. Poderia sair daí um desses filmes multiplot, que em determinado momento tenta achar uma união para fazer algum sentido. Bastardos Inglórios é unificado, ainda que dividido, linear e não-linear, indefinível mesmo que claramente postulado. Um filme sem protagonistas, a não ser sua própria imagem.

Dito isso, os coadjuvantes da construção imagética são divididos em três frentes, desniveladas, ainda que equilibradas em importância, todas buscando um ponto único. Brad Pitt é um bom chamariz de mídia, faz um trabalho excelente como o capitão que exige de cada um de seus comandados 100 escalpos nazistas, pelo menos. Pitt encarna um ser cru, não-dominável ou civilizado (não é a toa que seu apelido é Apache) e a performance caricatural é evidentemente calculada para entreter e forjar uma empatia. Shoshana, interpretada por Mélanie Laurent, é uma judia que consegue escapar de um massacre e que no futuro verá a oportunidade de se vingar do algoz de sua família (e do algoz do mundo). Mas o maior trunfo do filme reside na presença de Christoph Waltz, o coronel nazista Hans Landa da primeira seqüência, conhecido como “Caçador de Judeus”. Waltz é hipnótico, sarcástico, uma pessoa com quem seria perfeitamente possível dividir uma mesa num bar. Mas ele é também um monstro e o filme nunca esconde isso, ainda que permita ao público que goste dele. E assim, gostando de Waltz, gostando do capitão de Pitt, gostando de Shoshana, Tarantino vai misturando seu filme numa viagem pela história do cinema.

Com música de Ennio Morricone evocando os westerns de Sérgio Leone, num filme sobre a II Guerra Mundial, com toques de humor e tempo de filme francês (ou de um cinema oriental de hoje em dia), Tarantino constrói um filme autenticamente noir, onde ninguém é o que parece ser, todos estão mentindo e em algum nível são culpados. Os nazistas são cruéis, mas os americanos também são; alguém que queira acabar com uma guerra, antes quer salvar a si mesmo. E em uma taverna francesa, três oficiais da SS (agentes disfarçados, na verdade), alguns oficias e uma grande estrela do cinema alemão (que na verdade é uma agente dupla), desenvolverão a maior das farsas do filme – e seu melhor momento.

Durante todo o tempo a platéia saberá que a seqüência será concluída com um conflito. O que resta saber é mesmo como o conflito se dará e em que momento. Mas a seqüência em questão coloca em cheque essa própria percepção e subverte a expectativa, afinal é muito mais importante neste filme esperar pelo acontecimento que presenciá-lo de fato. O desequilíbrio entre o tempo de desenvolvimento e o de conclusão é tão gritante quanto apoteótico e prova o quanto o cineasta parece conhecer o alcance do que cria. Essa é a magia do cinema, o fato de poder ser pego de surpresa, mesmo quando pensamos que sabemos tudo, dominarmos tudo, que somos senhores do filme.

Bastardos Inglórios prova que Quentin Tarantino é senhor de seu ofício e que todos estamos subjugados a ele.  É, sem dúvidas, um dos maiores momentos do diretor e poderá ser uma decepção para alguns. Mas como é atestado no filme, diante da magnitude de um domínio, esta pode ser a sua verdadeira obra-prima.

Comentários (10)

Cristian Oliveira Bruno | sábado, 23 de Novembro de 2013 - 13:36

Eu coloco Bastardos Inglórios ao lado de Pulp Fiction como obras máximas de Tarantino. Os diálogos estão ainda mais afinados do que nunca e as cenas violentas, tensas e divertidas transbordam na tela. Waltz deveria ter sido indicado ao Oscar de melhor ator e não de Coadjuvante. Seu personagem é muito mais importante e tem talvez o mesmo tempo em cena que o de Brad Pitt.

Victor Bueno | terça-feira, 31 de Março de 2015 - 11:42

Tarantino já tem sua obra-prima desde 1994. 😉

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