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Críticas

Cineplayers

Um filme que resgata o noir, onde o seu charme é a imperfeição.

8,0

O Beijo Amargo é um legítimo filme noir dirigido pelo americano Samuel Fuller, em 1964 (mais uma obra do ano mítico). Foi o penúltimo filme que Fuller conseguiria realizar nos EUA antes que tivesse de se exilar na Europa em busca de melhores condições de filmagem, uma vez que seus filmes foram muito mal recebidos em seu país natal. Também, pudera: nem um pouco maniqueístas, violentos, sujos, deprimentes e perturbadores, trazem personagens desajustados em situações limites e quase nunca há final feliz.

The Naked Kiss nunca foi lançado comercialmente no Brasil. Só chegou aqui graças à distribuidora pernambucana Aurora, cujos donos viabilizam em DVD clássicos esquecidos ou pouco conhecidos do público brasileiro. Portanto, não espere grandes produções requintadas, com atores conhecidos e histórias cheias de clichês. Estamos no terreno da inovação, não do clichezão. Como também é filme noir, tem erros de continuidade, a montagem não respeita critérios de bom senso, muito cinismo, e por aí vai.

O filme tem uma forte cena de abertura: uma prostituta careca aproveita a bebedeira do cafetão e bate nele com uma garrafa de água até arrancar os 75 dólares que ele lhe devia. O filme salta dois anos e a cidadã aparece numa pequena cidade do interior refazendo a vida. Com fel escorrendo pelos cantos da tela, de uma ironia lancinante, vê-se a criatura apaixonada por bebês, boa amiga, excelente companheira de quarto e ótima enfermeira, pois trabalha ajudando criancinhas com deficiências físicas num hospital de reabilitação.

Como o filme é noir, há várias delícias em curso. Por exemplo, boa música. Toda a principal cena de sedução é feita ao som de Moonlight Serenade. Ela cita Goethe, pois era amigo de Beethoven. O galã retruca com versos de Lord Byron enquanto viam um filme sobre Veneza, tomando vinhos em jarras de cristais da cidade. Lembram Baudelaire. Afinal, os filmes noir eram escritos por autores europeus fugindo do nazismo que passaram a juventude lendo os grandes clássicos da literatura, não vendo Friends. Os americanos não ficavam atrás (o roteiro é de Fuller).

O politicamente correto ainda não imperava, daí que há cenas que hoje estariam sumariamente fora de qualquer filme, como a do sonho das criancinhas paraplégicas. Movidas pela música cantada pela enfermeira, jogam fora suas cadeiras de rodas e muletas e saem correndo pelo parque.

Desta parte em diante do filme, a coisa fica pesada, com os antigos clientes da ex-prostituta vindo à tona, ela dá uma surra na cafetina local, gravidez indesejada de uma companheira de trabalho, casamento arranjado, ela mata o marido e, por fim, pedofilia, mentiras, ardis, sevícias, baixaria de toda sorte, provincianismo, conservadorismo, hipocrisia, humilhações, prisão, bate-bocas, gritos, tapas, promiscuidade etc. Uma baixeza só, sem luvas, crua, direta, violenta e terrivelmente cínica.

Não é um filme perfeito, nem os produtores pretendiam isso. Não tem os famosos roteiros redondos e anestésicos de Hollywood, o que move as personagens não são as boas intenções, os caracteres principais parecem nos escapar sempre, pois são capazes de atitudes improváveis a cada instante, fora os momentos de tensão e explosão logo após tenras e cálidas demonstrações de afeto.

Tanto filme como diretor são considerados dois clássicos negligenciados do cinema. Não se perde tempo, pelo contrário, ao ver esse belo O Beijo Amargo, filme em que a beleza está justamente na imperfeição.

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