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Críticas

Cineplayers

Ausência em presença.

6,0

Em meio a uma série de filmes do cinema contemporâneo que empreendem um grande esforço para serem peculiares e diferentes - e quase invariavelmente se adequam a modelos bem definidos e limitadores – este A Bela Adormecida (Sleeping Beauty, 2011), filme de estréia da australiana Julia Leigh, consegue de fato sê-lo, para o bem ou para o mal. Apadrinhada por Jane Campion - única diretora a ganhar a Palma de Ouro na história - que “apresenta” o filme, Leigh constrói um filme silencioso, soturno e de fato bastante estranho.

Lucy é uma jovem de classe média baixa, que faz de tudo para “sobreviver”. Por tudo entenda-se de maneira literal: sem restrições, ela aceita desde trabalhos convencionais até serviços de acompanhantes de executivos, assim digamos. Em um deles, ela vive uma espécie de personagem e aceita ser sedada para servir a clientes com fetiches necrófilos: querem ter momentos íntimos com uma mulher que dorme (em coma? Morta?) e para isso desembolsam alto. O título do filme, portanto, faz alusão a uma de suas atividades, ao mesmo tempo em que evoca ironicamente o célebre conto de fadas homônimo.

O fato é que Lucy é uma jovem que está sempre em busca de trabalho, não importa quantos, nem quais, ela é quase que totalmente movida por essa força que, paradoxalmente, a mantém paralisada enquanto outros realizam seus mórbidos desejos em seu corpo inerte. Em sua urgência, Lucy lembra Rosetta, a personagem síntese do cinema dos irmãos Dardenne – a diferença é que Rosetta vive de fato uma situação materialmente deplorável e esta tem relação decisiva com seu desespero existencial, enquanto que Lucy, ainda que em situação claramente desconfortável, nunca é mostrada como alguém cuja necessidade é realmente compatível com sua obsessiva sanha produtiva.

A personagem de Julia Leigh é sempre mais distante, inalcançável, mantendo um mistério essencial que transborda nos longos planos fixos e abertos do filme (ao contrário da câmera epitelial e inquieta dos Dardenne). Lucy é mostrada plena, nua, sem pudores, em situações incômodas e constrangedoras, mas seu interior, sua alma, serão sempre fragmentados numa narrativa fantasmagórica, espectral, incompleta. Pode-se argumentar que o filme não consegue manter sua força ao crer demais em uma articulação que se esgota no durante, ou seja, não é capaz de construir uma aura suficientemente misteriosa em torno da personagem, e o que seria angústia e dúvida passa a ser monotonia dramática e também visual. Em sua atitude essencialmente moderna, pois, estaria também seu perigo. Seria Lucy construída para dizer respeito a um tempo cuja intangibilidade escapa à dramaturgia e também a toda metafísica, onde o corpo vira de fato um algo destituído de uma individualidade perceptível? Ao contrário de uma Laura Palmer ou uma Rebecca, intensas presenças em ausência, Lucy é a ausência em presença.

De toda maneira, o desfecho de Sleeping Beauty abre possibilidades curiosas, sendo certamente o plano mais interessante e enigmático de todo o filme, que continua conosco ao fim da projeção e que talvez abra uma fresta de ar em toda essa intangibilidade. Leigh, afinal,  constrói um filme de fato intrigante, o que, se não é muita coisa, pouca também não é.

Visto no Festival de Cannes 2011.

Comentários (1)

Marjorie Belanno | terça-feira, 29 de Novembro de 2011 - 00:35

Gostei bastante, mas pelo título e sinopse eu esperava mais, principalmente em termos de construção psicológica.

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