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Críticas

Cineplayers

Melodrama da delicadeza

7,5

Se Robert Zemeckis construiu sua filmografia dentro de uma subdivisão particular que passeou com a fantasia por entre outros gêneros cinematográficos distintos (a aventura, a biografia, o noir, a ficção, a comédia, o drama, a animação), nessa década seu interesse pelos códigos do melodrama pareceram aflorar em títulos como Aliados e O Voo, onde seu pincel fantástico pareceu mais inerente ao desenvolvimento das narrativas e suas particularidades, com diferentes resultados. O diretor chega a um lugar de ocaso em seu novo filme, 'Bem-Vindos a Marwen', seu primeiro trabalho a ter lançamento cancelado no circuito, chegando somente no mercado de DVD doméstico. Isso se deu pela ínfima arrecadação no mercado externo e as críticas pesadas que o longa sofreu, que desprezaram o olhar de Zemeckis para uma história real que repagina o gênero que Douglas Sirk consagrou.

Gerado a partir do documentário Marwencol, que apresentou ao mundo o artista plástico e fotógrafo Mark Hogancamp, que superou uma tragédia pessoal com um mergulho indiscriminado no lúdico, refazendo sua trajetória a partir de um retorno à inocência, após perder a memória depois de um espancamento sofrido por crime de ódio. Zemeckis absorve essa dica dada pelo próprio personagem e realça as fotos criadas que próprio clicou, ao criar em seu quintal uma cidade belga durante a Segunda Guerra Mundial e povoa-la com bonecos que teriam os rostos de seus amigos; parece surreal, talvez seja, e o diretor simplesmente dá vida ao trabalho que Hogancamp estabeleceu em suas fotos pós-acidente, refinando o espelhamento que o próprio artista já estabeleceu entre o trabalho que o salvou e a própria vida, criada a partir dos escombros de memória.

O diretor volta a trabalhar com a pureza que já lidou outrora para lidar com a aspereza, e se houve uma qualidade primal nesse trabalho, foi o extremo respeito com o qual seu protagonista é tratado, sem qualquer julgamento ou tentativa de rotulação. Tudo que aconteceu na trajetória de Mark Hogancamp é mantido sob a aura do intocado. Sua existência foi apagada após um ato de violência extrema, em seu lugar entrou em cena um homem em permanente construção e que não consegue concatenar o motivo pra ter mais de 200 sapatos femininos em seu armário. Ele os tem, e Zemeckis protege qualquer interferência ao que é sua atual vida - o passado é dor, Mark recriou seu redor com poesia e só isso importa. A partir desse mecanismo de contenção de informações, o diretor concebeu um roteiro (escrito a quatro mãos junto de Catherine) que fornece os dados e trata de rechear suas lacunas com delicadeza, mesmo em situações de horror. Afinal, os nazistas vez por outra tentam invadir a pequena Marwen e as mulheres que fazem a proteção da cidade estão aptas a abrir fogo. Literalmente.

O trabalho técnico empregado no filme é, mais uma vez como de hábito com o diretor, digno de atenção. Desde os anos 80, Zemeckis revolucionou o cinema de fantasia em técnica, em construção narrativa, em utilização e adequação à história apresentada, e em Bem-Vindos a Marwen teríamos a possibilidade disso voltar a acontecer, só que como em Capitão Sky e o Mundo do Amanhã, o fracasso dos projetos irá abafar a nova perspectiva criada pelos mesmos. Para além do universo do protagonista explorado e capturado, inserindo o rosto do elenco em suas versões em bonecos animados e dando agilidade a eles, a realização é repleta de planos-sequência elaborados, que saem do material 'real' pro 'fantástico' e vice versa, elevando um projeto que se imaginaria tendo um caráter realista e injetando esse viés imaginativo, multifacetando a realidade que o protagonista concebeu pra si.

Signos reconhecíveis do melodrama como a presença do clímax em um julgamento e o confronto entre Bem e Mal narrativos de maneira explícita reforçam as bases onde Zemeckis estabeleceu sua zona de interesse recente, mas dessa vez ao introduzir sua marca registrada em uma história previamente conhecida, parece sair enfim do estado de torpor onde parecia ter estacionado a carreira. Ainda que não tenha capturado todas matizes possíveis em sua empreitada deixando alguns questionamentos em branco e repensando de maneira ambígua o papel feminino no cinema contemporâneo (somando força cênica e subtraindo força dramática delas), Bem-Vindos a Marwen finalmente conecta seu diretor ao melodrama pretendido, conferindo a autoralidade típica do autor e cuidando de sua figura central com doçura e compreensão, sem devassar essa história de recomeço. 

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