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Críticas

Cineplayers

O deslocamento que aproxima os iguais.

6,5

Deborah Secco diz ser o trabalho máximo de sua carreira, um filme que a fez tomar um rumo que deseja manter enquanto atriz. O resultado é definitivamente satisfatório, a composição de sua personagem é crível: magra, pálida, distante do padrão de beleza que agarrou ao longo de sua vida na dramaturgia brasileira. Sua atuação também contribui, sem pudores e com coragem encarna uma personagem à beira da morte. Boa Sorte (idem, 2014) é um filme de asilamentos e distanciamentos, passado quase que inteiramente numa clínica de recuperação de dependentes químicos. Lá as experiências de vida se acumulam e ideias emergem das mazelas humanas, das adicções, dos medos e das escolhas.

O apego ao outro é o que mantém o filme ativo do início ao fim, pois testemunhamos o afago entre dois estranhos se encontrando em suas desorientações. Ela, Judite, é HIV positivo, usuária de uma infinidade de drogas, está com os dias se encerrando pois a medicação já não faz mais efeito devido aos abusos passados. Ele, João (João Pedro Zappa), é um jovem viciado em psicotrópicos internado pelos pais após esses presenciarem comportamentos estranhos. Os dois se encontram ocasionalmente na clínica quando ela lhe oferece o que ele mais deseja: drogas. As drogas que o levaram até ali e que melhoraram suas vidas consideravelmente enquanto humanos. Judite em um momento relata que seu físico e sua cabeça não se entendem. Desorientamentos, deslocamentos, transferências e uma similaridade: a paixão.

A paixão nasce em Boa Sorte da necessidade do outro, coisas que, aparentemente, segundo o roteiro da dupla Jorge e Pedro Furtado, o casal não tinha, ou não conhecia. A metáfora sobre a invisibilidade vem a calhar nessa perspectiva ampla de relações e suas funções um para com o outro. Torna-se um filme de magia, um romance de ilusões com traços de Gus van Sant. A direção é de Carolina Jabor e esse é seu primeiro longa de ficção. A cineasta transita bem pelos corredores daquela clínica precária cercada por corrupção, abarrotada de métodos pragmáticos e desinteresse pela saúde de quem acolhe. Tudo gira em torno da lógica do entorpecimento.

Alguns planos denotam o talento da cineasta em trabalhar cenas de grande impacto sensorial, como o plano sequência que segue seus malucos em salas e corredores como se acompanhasse uma dança. É a mais bela cena do filme. Outras são belas pela foto. E já que nem tudo é beleza, algumas decisões da diretora parecem equivocadas: o roteiro linear parece querer confundir o espectador sobre o que é real ou não. Não é feliz na conclusão. A transição do primeiro para o segundo ato é simplória, restando somente a dinâmica dos bons atores. As representações das justificativas são pouco significativas e entregue a clichês, desmoronando as oportunidades de efervescer discussões sobre asilamentos. O bom mesmo é acompanhar o casal e aguardar o terceiro ato que melhora consideravelmente o ritmo e os fundamentos artísticos, ainda que destoem do romance e pareçam desassociados à obra.  

A situação de internações em casos de adicções ou de ordem psiquiátrica possui um terreno fértil capaz de influenciar roteiros estupendos trabalhando justamente com a possibilidade do real e imaginário. A linha limite entre os dois ainda permanece em questão. Não acho que a proposta de Boa Sorte tenha sido discuti-la, embora tenha trazido aspectos das relações sociais e familiares de um dos lados, deixando o outro como hipótese. O drama se salienta nessa dúvida e a cumplicidade vista entre os amores de diferentes idades enobrece o texto. João está começando sua vida, Judite está despedindo dela. O que Jabor melhor faz é compor a simetria entre o casal, desde o descobrimento da paixão até a gana adolescente cheia de birras do querer a qualquer custo. O sexo, o beijo, as lágrimas só acrescem àquele relacionamento. Foi paixão, de fato.

A negligencia dos outros para com aqueles infelizes em terno sofrimento e solidão justificou a concepção de Boa Sorte. Há muito além disso, sem dúvidas, e não cabe ao filme tratar. Ao menos não é a proposta desse. Há algum tempo que o cinema nacional vem flertando com o tema do asilamento, por exemplo, Bicho de Sete Cabeças (idem, 2001), Meu Nome Não é Johnny (idem, 2008) e o relativamente recente Meu País (idem, 2011). Jabor concebe um bom filme, promove reflexões e demonstra pretensão ao exprimir arte em cena como referência ao que sucede aos seus bons personagens. A boa sorte termina lançada, resta descobrir o que fazer com ela. Algumas coisas não mudam, outras precisam ser mudadas. É a tal busca por sabedoria em reconhecer a diferença.

Visto durante o 6° Paulínia Film Festival

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