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Críticas

Cineplayers

Um pouco da obra experimental do português João César Monteiro através de As Bodas de Deus.

8,0

João de Deus, o tarado pedófilo do filme anterior, A Comédia de Deus, está tranqüilamente almoçando num parque depois de anos trancafiado num hospício (foi condenado por abusar de adolescentes) quando o diabo em pessoa lhe dá uma mala cheia de dinheiro. João de Deus então irá desfrutar da luxúria e da lascívia proporcionada pelo dinheiro maléfico, sem nenhum arrependimento ou qualquer sinal de remorso cristão. Tanto que usará o dinheiro para roubar a esposa de um milionário saudita do petróleo, casar-se com ela e realizar seus sonhos eróticos mais mesquinhos.

Trata-se de As Bodas de Deus, mais uma hilariante e iconoclasta comédia do diretor português João César Monteiro, morto em 2005, dono de uma das cinematografias mais radicalmente autorais da história do cinema. Não há limites para João César Monteiro: fez em Branca de Neve uma continuação da conhecida fábula sem nenhuma imagem; a tela do cinema fica escura por duas horas, com poucas interrupções, enquanto as personagens declamam o filme.

Monteiro fez da igreja, da religião católica, do mito da caridade cristã e do sentimento de culpa os alvos favoritos de sua ácida crítica às instituições – todas elas, sem exceção. João de Deus, para quem não se lembra, era o nome popular escolhido pelo papa para os súditos de língua portuguesa. Monteiro fez o seu João de Deus um ser preocupado em satisfazer seus desejos, mesmo que isso signifique perder tudo que ganhou numa mesa de jogo: “O que vem fácil, vai fácil”, afirma.

Em longas e lentas duas horas e meia de filme, com planos estáticos, muito bonitos em sua maioria, alguns grotescamente encenados, Monteiro, que interpreta o personagem principal, vai desfilando seu rol de crueldades e mesquinharias permeadas por citações filosóficas dos pensadores epicuristas e hilárias tiradas cínicas que garantem a diversão. 

Monteiro não corta suas cenas e algumas vezes tem-se a impressão de que o filme não vai terminar nunca, pois foi alongado excessivamente. Mas o ritmo propositalmente reflexivo imposto pelo diretor é fundamental para o entendimento do filme, em que cada ato do personagem traz uma crítica ao modo de pensar cristão, em especial católico, que vê o mundo por uma lente distorcida pela igreja e que, segundo ele, causa algumas das piores sanções à liberdade do ser humano.

Tanto que filma uma cena de sexo sua, com direito a nudez frontal, ele, esquálido e pelancudo aos 60 anos, e uma mulher linda. Não há ereção. O filme é todo ele masoquista, um exercício narcisista de auto-expiação levado a um limite poucas vezes tentado (talvez só com Pasolini e alguns diretores experimentais), anárquico, que recusa a construção de uma linguagem cinematográfica: não há plano, contra-plano, história, moral, catarse, música etc.

Assim, no final, com a polícia atrás dele tanto por envolver-se com uma terrorista internacional quanto por sonegação de impostos, termina novamente na prisão ouvindo seus trechos de suas óperas favoritas. Nenhum arrependimento demonstra, nem mesmo quando encontra, também preso por problemas mentais, o diabo que lhe deu o dinheiro. 

Poucos cineastas foram tão atacados quanto João César Monteiro, em especial em seu país natal, a Portugal católica e conservadora. Seus filmes finais caminharam para um impasse: estavam ficando cada vez maiores, mais radicais e praticamente impossíveis de se ver (no caso de Branca de Neve, literalmente). Morreu depois de filmar a si próprio tratando de câncer num longa de três horas, Vai e Vem, em que o personagem, um tal de João Vuvu, passa o filme todo a andar no transporte público de Paris e Lisboa. 

Foi-se um dos mais radicais criadores do cinema, ficam os cinéfilos com as imagens criadas por ele, como o famoso banho de leite que ele dava nas adolescentes antes de abusar delas – o leite era coado e os pêlos pubianos cuidadosamente colados num caderno chamado “O livro dos pensamentos”.

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