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Críticas

Cineplayers

Aula de vulgaridade para intelectuais.

8,5

Boa parte dos filmes de Howard Hawks segue uma semelhante estrutura em que um grupo de homens, deslocados em um microcosmo social bem específico constituído a partir de seu trabalho, vê a vida virar de pernas pro ar a partir do momento em que este espaço é invadido por uma mulher – personagens geralmente belas e sedutoras, quando não destrutivas. Surgem deste embate duas das principais temáticas trabalhadas pelo diretor: a relação do homem com o seu trabalho e os riscos que ele gera e o quanto uma mulher pode bagunçar a vida destes machos tão aplicados. É esta a fórmula construída ainda em tempos de Levada da Breca (Bringing Up Baby, 1938), no lado cômico de sua carreira, e Paraíso Infernal (Only Angels Have Wings, 1939), no lado dramático, e que foi revisitada por Hawks com precisão por muitas vezes, sempre com vigor e frescor impressionantes e que jamais deixaram seus filmes soarem como repetição.

Bola de Fogo (Ball of Fire, 1941) foi filmado logo após sua melhor comédia, Jejum de Amor (His Girl Friday, 1940), e retorna a esta fórmula depois da pausa para um filme absolutamente transloucado e informal, quando não propriamente maluco. Mas a maluquice, vale lembrar, permanece aqui firme e forte, também remetendo muitas vezes ao exagero subversivo da anárquica fase final de sua carreira. O ambiente retratado em Bola de Fogo é a academia universitária. Como ponto de partida temos oito senhores intelectuais e de formação em áreas específicas (letras, direito, história, etc) que se reúnem em uma grande casa onde, seguindo um sistema muito rigoroso de regras e horários, escrevem aquilo que chamam de “a grande enciclopédia do conhecimento humano”, que segundo eles deverá compilar – naquele velho formado de A a Z – todas as descobertas e sabedorias da humanidade.

A pompa destes senhores desaba quando, conversando com um lixeiro, se dão conta de quão obsoleto tornou-se seu conhecimento após tanto tempo de exclusão da sociedade, enquanto ficavam trancados discutindo e registrando tudo o que leram e constataram: das porções de gírias e assuntos apresentados pelo humilde gari, não conseguiram compreender praticamente nada – uma observação que parece uma forte herança do material escrito por outro mestre, Billy Wilder, responsável pelo argumento e por parte do roteiro. É então que o mais lúcido e jovem de todos os doutores, interpretado por Gary Cooper, resolve ir às ruas para uma pesquisa de campo, descobrindo a existência de uma belíssima cantora, interpretada com surpreendente ar sedutor pela mala da Barbara Stanwyck, que é convocada a participar de um grupo de pesquisa no local de trabalho deles e, a partir disso, causa uma verdadeira revolução em suas vidas.

Hawks filma o choque entre dois ambientes distintos, a formalidade acadêmica e a vulgaridade das ruas, canalisada numa espécie de femme fatale não-oficial que guarda uma série de peculiaridades: além de cantora e dançarina, namora um gângster, é fugitiva da polícia e, segundo ela mesma, pode ser encaixada em um dos tantos adjetivos ainda não conhecidos pelos senhores: tramp (vagabunda). Numa de suas primeiras cenas ela se desfaz do casaco que veste e circula pela casa com um vestido curtíssimo, com mais pontos brilhantes do que pano, esticando suas pernas enquanto se deita em uma poltrona para que os homens sintam seus pés gelados - num plano ousado e extremamente controverso. Ainda assim, ou justamente por isso, chama a atenção de um dos senhores, o próprio Cooper, que entra em um conflito de razão x emoção e faz de tudo para não se deixar levar pela sedução da moça em prol da organização de seu trabalho.

É evidente que não consegue, e a partir daí as coisas todas são arremessadas para o alto e o que resta, determinantemente, é o humor. Hawks dilui tudo em uma porção de cenas cômicas e conforme estas duas esferas – razão e emoção – se cruzam o filme vai engordando suas proporções de maluquice a la Jejum de Amor até chegar a um final absolutamente insano, mas que soa perfeitamente crível dentro da ficção proposta, pela forma com que é posicionado na narrativa através dessa crescente. Como de habitual o diretor conduz tudo com uma seguridade monstruosa, de forma que não exista crença em qualquer outra coisa que não a potencialidade humorística da situação – e ver os velhinhos vestidos de gângster e portando metralhadoras num ataque insano contra foras-da-lei acaba sendo uma saída indispensável para o funcionamento deste humor.

Alguns anos depois, enquanto filmava À Beira do Abismo (The Big Sleep, 1946), Howard Hawks fez uma de suas observações mais eternas dentro da concepção de cinema como um produto artístico. Ao ser questionado sobre quem seria o responsável pelo assassinato que dá o pontapé inicial do filme, Hawks não soube responder, nem se convenceu pela resposta dada pelo autor do livro que estava adaptando. Decidiu então que não sacrificaria seu filme pela lógica da realidade. “Foi com À Beira do Abismo que descobri que a lógica não era importante. O importante mesmo era filmar boas cenas”. Embora inconscientemente, o pensamento já fazia parte do cinema de Hawks bem antes disso, e diz respeito muito mais a um olhar específico do diretor sobre a arte de filmar do que propriamente uma descoberta da experiência com o filme. Hawks foi um cineasta pleno em estabelecer conflitos dentro de uma lógica particular e intransferível; seus filmes são regrados por seus próprios conceitos de mundo e moral, e qualquer semelhança com o lado de cá é mera coincidência.

Estamos, enfim, no cinema.

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