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Críticas

Cineplayers

O cinema sem expressão.

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Da beleza pálida da aristocracia inglesa ao fastio torturante da própria ausência de estilo ou qualquer sinal de ambição que seja, Julian Jarrold ergue um verdadeiro monumento de gesso ao tédio, ao amorfo, ao vazio, à incomunicabilidade do assunto com o espectador por falhar no mais básico e primitivo dos aspectos no cinema. Jarrold filma os homens, as paixões, as traições, os desejos inadvertidos e a culpa sempre intoxicante como filma as pilastras, as paredes, as estátuas da velha mansão que dá nome ao filme. Nada mais adequado a quem tenha a sensibilidade de uma pedra.

Brideshead - Desejo e Poder é a adaptação de um romance do escritor inglês Arthur Evelyn Waugh, de 1945 (editado no Brasil como Memórias de Brideshead). Ganhou uma versão para a TV (com Jeremy Irons) no início dos anos 80, e entra, portanto, para o vasto rol dos materiais sobre os quais não faz sentido algum uma releitura, ainda que eu nunca tenha chegado nem perto de ler o livro ou assistir à minissérie, embora queira crer que ganho direito a um inocente pré-julgamento, seja por ter vencido os mortificantes 130 minutos, seja porque a negligência de Julian Jarrold ao inclusive tentar estabelecer qualquer rastro de identidade que fosse termina escancarando uma janela para o objeto original. Na falta da forma, afinal, resta o conteúdo (o que também não resolve muita coisa).

Numa Inglaterra ferida pela 1ª Guerra, onde ainda desfila uma nobreza que teima em sobreviver com seus costumes e suas convicções intactas, Charles Ryder (Matthew Goode), filho da burguesia cujo contato com tal universo é apenas um sonho distante, vê-se adentrar o mundo grandioso dos aristocratas, guiado por Sebastian (Ben Whishaw) com quem vive um breve, mas intenso, romance homossexual. De dentro da família Marchmain, Charles entra em conflito com a matriarca (Emma Thompson), uma católica extrema, e se vê dividido entre Sebastian e sua irmã Julia (Hayley Atwell), sofrendo ainda com a influência nociva da atmosfera de Brideshead, um santuário e também uma passagem no tempo para uma sociedade morta-viva que ainda hoje exibe a velha polidez social aparentemente intacta ao passo que nega e oculta sob esmalte nobre a já antiga extinção (se servir de curiosidade, destaca-se pelo contraste a visita à Veneza, portal pra uma Itália já perfeitamente assimilada pelo Séc. XX. Lembrei de O Leopardo, do Visconti; com o perdão de citá-lo nesse texto).

A falta de posição, de sentimento, de personalidade, de imaginação ou mesmo de vontade que percorre e preenche cada minuto de Brideshead de um jeito quase sufocante é produto de uma direção mecânica, de uma condução frágil e displicente, de uma narrativa que despreocupa-se em narrar, de um diretor que abre mão da responsabilidade de comunicar o que julga comunicável por si só. E esta é a versão em que Jarrold sai ganhando, porque se eu achar que ele realmente elaborou um esforço criativo, um trabalho de composição e mise-en-scène para fazer de Brideshead um filme e não um comercial imobiliário, vou ser obrigado a taxá-lo de incompetente pra baixo.

Ah, por que não, estamos aqui pra isso: em determinado momento, Charles, que deseja se tornar pintor, é indagado por um dos seus colegas de Oxford sobre qual seria o ponto em pintar uma tela, afinal, se basta pegar uma câmera na mão e tirar uma foto. Charles responde que uma foto nada mais é que a captura de um momento no tempo, apenas a cópia de algo (os leitores-fotógrafos-irados que me perdoem, as palavras são dele). Ao contrário, a pintura seria uma expressão dos sentimentos de quem pinta, uma “expressão do amor”. Pois bem, de um certo (e muito, muito específico) modo, Brideshead é um filme bonito. As tomadas externas da propriedade, em especial, são objetivamente belas. No entanto, toda esta beleza não é nada além de a “cópia de algo”. Não há a plasticidade encontrada por um cineasta no que Jarrold captura com sua câmera, o que faz de Brideshead um filme onde o objeto é mais interessante que seu criador, resultando enfim numa inutilidade sem tamanho, visto que o trabalho de Jarrold não é lá muito diferente do trabalho de um fotógrafo de revista, e mesmo as belas tomadas externas em nada conseguem somar ao filme sem que haja entre a beleza do objeto e a mão de quem o registra uma ligação autoral / humana / criativa que é, afinal, o que interessa no cinema. Nessa metáfora imbecil, portanto, Jarrold passa longe de ser um “pintor”.

E é assim que se seguem as mais de duas horas, como um registro, não uma direção. E o vocabulário de Jarrold - ainda que pra o vocabulário de um repórter cinematográfico de jornal de meio-dia - é algo limitadíssimo. Ou a câmera acompanha os personagens passeando pela propriedade, ou segue a velha cartilha de planos durante os diálogos, ou registra quadros estáticos de Brideshead vista ao pôr-do-sol / ao amanhecer / em um dia de chuva / em um dia de outono etc. Há apenas um momento em que Jarrold ensaia uma câmera subjetiva que, ao contrário de quaisquer que possam ter sido as suas intenções, soa completamente alienígena, perdida ali no meio, espremida entre dois cortes com uma duração que não deve chegar a 3 segundos. Fica parecendo descuido na hora da montagem.

Inclusive há uma certa relação com Ano Passado em Marienbad, pela proposta do material (não de Jarrold, que ou ignorou ou tentou e fracassou), de retratar Brideshead como um palacete vivo, um semi-personagem. Nos dois filmes o passado é o fantasma que arrasta correntes pelos corredores, mas se na obra-prima de Resnais era a memória o objeto, aqui são os dogmas dos pilares desta sociedade decadente (família e religião) que funcionam de calabouço para quem uma vez atravessa os portões e não consegue sair nunca mais. Mas tudo isso é proposta, repetindo; o resultado é apenas uma mentira contada com preguiça.

Nessa total falta de noção de como contar uma história (definição mais básica pra essa arte que a gente adora, afinal), a exclusão de dois personagens fundamentais no meio do filme termina por mudar completamente o rumo, o tom, o argumento de Brideshead. Se até pouco mais de uma hora o tema ali era a tentativa de inclusão em um mundo ao qual não se pertence, a tentação, a resistência e freio nos próprios sentimentos; a metade final converte-se numa cruzada contra a ação tóxica do catolicismo nas vidas destes personagens (que mais parecem figurantes promovidos a protagonistas por algum acidente obscuro), finalizando 130 minutos como uma massa heterogênea, insípida e sem propósito.

Mais rápido seria traçar uma lista com todos os objetivos em que Brideshead - Desejo e Poder se lança e falha miseravelmente. Na verdade é o típico filme sobre o qual não há nada pra se dizer. Iguais a ele saem centenas por ano. Não que eu exija um cinema de autor ou então um bom e velho entretenimento de gênero pra tudo que eu enfie no meu DVD, não existe tal mundo ideal - mas pelo amor de Deus, algo, um conceito, um objetivo, um traço de pretensão que seja, qualquer coisa que justifique isto se passar numa tela grande e não num canal educativo de TV a cabo.

Brideshead é inútil. Não tivesse uma linha narrativa tão clássica, de ciladas e caminhos já tão conhecidos de outras mil histórias iguais a ela, o argumento seria simplesmente inacessível ao espectador, porque não há como captar rigorosamente nada dos objetivos de Jarrold a cada cena. Cinema é expressão, e esse cara nasceu mudo. Se for pra perder o seu tempo fazendo filmes ruins ou então assistindo a filmes ruins, por favor, faça-o com algum estilo (e eu incluo o que há de mais baixo aqui, desde comédias do Eddie Murphy a refilmagens de slashers oitentistas), porque de todas as sensações que o cinema é capaz de despertar até nas piores produções (a raiva, a repulsa, a decepção, o humor involuntário), nada consegue ser mais destrutivo que o tédio quando conjugado em todas as suas formas.

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