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Brooklyn - Sem Pai Nem Mãe

(Motherless Brooklyn, 2019)
7,0
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Críticas

Cineplayers

Assinando uma obra

8,0

Às vezes, o cinema só precisa mesmo de uma bela história clássico-narrativa mesmo, bem contada, bem delineada, sem invenções estratosféricas, só a base de tudo: direção, roteiro, elenco. E alguma magia acontece no set que vaza para a sala escura, ainda que momentaneamente. Brooklyn - Sem Pai Nem Mãe (Motherless Brooklyn, 2019) é uma tentativa de Edward Norton retomar uma cadeira que experimentou há mais de 20 anos, em Tenha Fé (Keeping The Faith, 2000) e que demonstra como o cinema está perdendo um belo e consistente cineasta, capaz de traduzir em imagens uma história da melhor e mais adequada maneira possível.

Bebendo na fonte do cinema noir através do livro assinado por Jonathan Lethem e adaptado pelo próprio Norton, temos aqui uma história de crime e investigação, com algumas pitadas inusitadas que ajudam a história a oxigenar, como a síndrome de Tourette do protagonista, que poderia criar um elo bizarro que esbarrasse num tom escrachado equivocado, e que deve ter sido um dos grandes desafios da produção, em criar o clima adequado para apresentar a doença sem deixá-la cômica ou ridícula. Esse esforço é praticamente todo de Norton, que também produz e protagoniza o filme, ou seja, função quádrupla, e depois do estranhamento inicial (pelo qual todos os personagens que conhecem Lionel), impossível não se afeiçoar a um homem com tanto a oferecer dramaticamente. 

Norton fez o trabalho de casa muito bem, e, sem querer povoar seu filme de elementos exagerados imageticamente, o rumo da direção escolhido por ele não estiliza suas imagens, e sim tenta criar um lugar de conforto para o que está sendo mostrado. Com suavidade e discrição na condução, acompanhamos Lionel se tornar órfão mais uma vez, ao perder seu mentor e protetor, e ser o único realmente interessado em confrontar esse assassinato. Lionel é um homem que, devido à sua condição, pode ser confundido com um incapaz, mas cuja sagacidade inata e a capacidade de memorização o coloca a frente dos seus pares, que não o subestimam. 

A captura de planos do filme tenta situá-lo no contexto em que homenageia seu gênero de origem sem se prender a obrigações formais nem querer recriar uma atmosfera do cinema da época retratada. Alguns momentos são especiais, como quando Lionel começa a seguir seu foco de vigilância e a imagem de ambos é refletida da poça d'água da rua, quando eles chegam no apartamento dela que foi invadido e o close se dá em Norton tapando a boca de Gugu Mbatha-Raw, ou quando em uma sequência tensa de perseguição a banda de jazz do "bar-cenário" do filme adentra a narrativa para criar a música ambiente da sequência. São momentos como esses que observamos o apuro sutil do diretor Norton. 

Se não tenta reproduzir marca a marca os signos de um gênero e até tenta revitaliza-lo nos belos moldes que o hoje esquecido O Diabo Veste Azul (Devil in the Blue Dress, 1996) de Carl Franklin também almejou com muita competência, o filme nos transporta para uma época (do mundo e do cinema) onde a simplicidade era criada com muito requinte, uma espécie de sessão nostalgia do qual hoje a experiência cinematográfica pouco ambicione reproduzir, mas que necessita reencontrar lugar de exposição. 

De manufatura delicada, Brooklyn - Sem Pai Nem Mãe brilha nas mãos da diretora de arte Beth Mickle, do fotógrafo Dick Pope (parceiro de Mike Leigh) e do compositor Daniel Pemberton, que conceberam conjuntamente com seu autor os elementos possíveis pra essa homenagem ganhar vida depois de 20 anos de tentativas obcecadas, compondo o conjunto de fatores necessário para reconstruir não apenas um passado, mas um estado de espírito. A montagem de Joe Klotz talvez seja o grande senão do filme, que carece de foco na estrutura, caminhando entre picos de eventos vez por outra sem criar um jogo de camadas que se sobreponham em ritmo. 

No absurdo grupo de atores, um desfile de talentos que incluem Alec Baldwin, Willem Dafoe, Bruce Willis, Cherry Jones, Michael Kenneth Williams, Bobby Cannavale, Dallas Roberts, mais Norton e Gugu, emprestam sua expertise manancial de talento pra compor o painel humano que o diretor desenhou para esse quadro de ascenção e queda das confianças quebradas e das verdades escondidas, o mote universal de um bom exemplar de noir que ele saudavelmente nos oferece, junto à talentosa marca que ele há quase 25 anos confere a tudo que toca, aqui em mais uma emocionante demonstração de seus recursos artísticos. 

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