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Críticas

Cineplayers

Do filme à perfumaria do retrato.

6,0
Do final da década de 60 até o presente com quase um filme por ano, e, portanto, propenso a bambolear – alguns dirão que, ultimamente, com muita frequência, e nisto eu concordo –, Woody Allen consolidou para si a figura do jocoso sabichão da própria cultura. Aquele para quem o cinema, a música e a literatura norteamericanas fazem quase parte de sua composição celular, todas filtradas pelo humor hipocondríaco do judeu em eterna crise, personagem conceitual cujas nuances invariavelmente se impregnam nos seus personagens – os seus melhores, aliás, são quase sempre cópias perfeitas de Woody. Mas eis que a fórmula, de fato, ficou desgastada. E não é que o fascínio das encruzilhadas amorosas tenha logrado para si o status abatido da repetição, afinal, todo autor muito provavelmente está sempre realizando o mesmo filme; a questão para Woody, a despeito dos revigorantes fôlegos de Blue Jasmine (2013) e Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works, 2009), parece ser uma de subtração: ou lhe faltam os personagens histéricos e magnéticos como centros de força ao redor dos quais a narrativa toda se empolga junto, ou assim eles se apresentam, para depois murchar e tornar o filme um painel bobo e ilustrativo de uma paixão por esses mesmos embalos culturais que o sedimentam.

Lamentavelmente, o caso de Café Society (2016), impulsionado por essa obsessão pelo cinema que, aliás, nunca conseguiu superar A Rosa Púrpura do Cairo (The Purple Rose of Cairo, 1985), é mais o de um álbum de figurinhas da Hollywood do final dos anos 30 do que o de uma narrativa propriamente pensada para circundar e alimentar um Eisenberg e uma Stewart (por sinal, sem encanto algum). Montado como um bloco de situações em forma de quadros ilustrativos cuja construção segue a ordem de espécies de segmentos de um seriado semi-documental sobre os anos 30, e que a narrativa pincela só para reafirmar ou situar, Café suga paulatinamente o vigor de uma trama mais próxima das motivações e direcionamentos de um personagem e injeta seus tempos e preocupações em um monólogo pessoal exibicionista – e desconfio, aqui, que a ingênua intenção pode ter sido só a de abrir o peito para enunciar algumas dezenas de paixões – e travestido do interesse de todos que compõem a trama pelo mundo do cinema em si. Dispondo dos atores que quisesse para emprestar algum tipo de ânimo ao par romântico, que no roteiro, perceptivelmente, já nascia sem graça, é desculpável que Allen tenha selecionado, curiosamente, dois dos mais apáticos da Hollywood atual?

Ora, estamos falando, aqui, de uma época em que a decolagem do star system americano efetivamente se presentificava na criação do sentimento-sustentáculo de toda a história cinematográfica. Se a cinefilia encontrou nascedouro em algum lugar, ele foi nos corpos e rostos de Ginger Rogers, Jean Harlow, Bette Davis, Fred Astaire, Cary Grant, Dick Powell, Clark Gable, etc. Quem é o símbolo da paixão em Os Incompreendidos (Les 400 coups, 1959) de Truffaut, senão uma fotografia de Harriet Andersson? É por isso que se há algum autor verdadeiramente vivo no filme de Allen, este é Vittorio Storaro, e se existe alguma honesta transferência do deslumbre cinefílico dos anos 30 para quase 90 anos depois é esse efeito que a fotografia tem ao emoldurar e envaidecer os rostos de Stewart e Lively, por mais brevemente que seja, e causar esse maravilhamento que o olho do observador das imagens do cinema carregou desde a primeira projeção como que por transfusão inconsciente, passional e assombrada. Ali, sim, no alaranjado dos tons, está Café Society.

Café Society que é, nas palavras daquele mesmo que o narra, um compêndio de regras – provavelmente de sociabilidade, de coexistência entre os gângsters, produtores, diretores, socialites, atrizes, figurões dos bares, donas de casa, jornalistas e mais uma infinidade de personas, ícones sociais que Allen tenta reproduzir e acaba por sufocar, como figurinhas ocas de um álbum de colecionador solitário. A verdade é que Bobby e Vonnie saem de lugar nenhum e não alcançam a melancólica distância que suas escolhas teriam ditado. O fade out de Café é mais a interrupção de uma linearidade frustrada do que um fim em si. Ocupado demais em narrar e retratar, Allen atira longe demais do antigo brilho (mais uma vez), e não há travelling, iluminação ou piano clássico que o salvem.

Comentários (2)

Alexandre Koball | quarta-feira, 31 de Agosto de 2016 - 13:17

O último foi bem fraquinho... mas Allen é um monstro de regularidade.

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