Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Isso não é arte, é propaganda de sabão em pó.

5,0

Rob Marshall não quer ser John Malkovich: ele quer ser Tim Burton.

Para seu novo filme, Marshall não se contentou em ter o ator fetiche de Burton, Johnny Depp, como um dos coadjuvantes:  toda a equipe técnica de Caminhos da Floresta (Into the Woods, 2014) já trabalhou com Burton. O desenhista de produção é o canadense Denis Gassner, de Peixe Grande e suas Histórias Maravilhosas (Big Fish, 2003). Os diretores de arte são Andrew Bennett, Mary MacKenzie e Chris Lowe, de Sombras da Noite (Dark Shadows, 2012) – que deram uma boa reciclada no que fizeram antes –, e Ben Collins, de A Fantástica Fábrica de Chocolate (Charlie and the Chocolat Factory, 2005), além Coleen Atwood, que foi a responsável pelos figurinos de 10 filmes de Tim Burton e fará o próximo – a  parceria deles começou em Edward Mãos de Tesoura (Edward Scissorhands, 1990).

Sem contar que foi Tim Burton quem primeiro adaptou para o cinema um musical de Stephen Sondheim em Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (Sweeney Todd, 2007). A cara de pau é tanta que Rob Marshall usou o arranjador, Jonathan Tunick, e o regente, Paul Gemignani, de Sweeney Todd, em Into the Woods. Até as árvores da floresta de Marshall se envergam como as da A Noiva Cadáver (Corpse Bride, 2005) e O Estranho Mundo de Jack (The Nightmare Before Christmas, 1993). Ficou de fora o fotógrafo, pois o preto-e-branco inspirado no noir americano e nos expressionismo alemão de Burton é escuro demais para Marshall, que preferiu o maneirista Dion Bebee, mais colorido. Por que diabos não deram o filme para o Burton dirigir?

Apesar de todo esse esforço, o resultado está bem longe de ser um filme do Tim Burton. Evidentemente, Marshall não saberia o que fazer com Johnny Depp e os míseros momentos que ele fica em cena são constrangedores (como o uivo de lascar) e inverossímeis, uma vez que toda a implicação sexual da cena com Chapeuzinho Vermelho foi cortada. As simplificações não param aqui: na versão cinematográfica, Rapunzel não será assassinada, seu namorado-prince não ficará cego e a mulher do padeiro não trai o marido - a música em que o marido se pergunta sobre a infidelidade da mulher, Any Moment, foi suprimida. É quando o cinema revela as suas limitações: se para chegar às telas são necessárias tantas concessões e tanta superficialidade, isso não é arte, é propaganda de sabão em pó, só com boas intenções e beleza asséptica.

Na primeira parte do musical, um punhado de personagens dos contos de fada dos irmãos Grimm fazem desejos que terminam por ser realizados. Na segunda parte, depois do intervalo, vêm as consequências dessas escolhas. Rob Marshall é incapaz de sustentar a densidade e a angústia da segunda parte e cortou três músicas, reduzindo em mais de meia hora as implicações morais da peça original. Em suma, filmou só a primeira parte e como se fosse um conto de fadas, com um ensolarado e improvável final feliz, o exato oposto do que é a peça. Na famosa cena em que o príncipe diz “Fui criado para ser charmoso, não para ser sincero”, o diretor também não consegue o tom certo para Chris Pine, responsável pelo pior momento do filme, o dueto Agony (uma verdadeira agonia, sem dúvida), em que termina eclipsado pelo ator Billy Magnussen. Marshall exagera tanto nas cenas com Meryl Streep que, quando ela finalmente sai de cena, é um alívio (a cena também não fará sentido para quem não conhece o original, pois as motivações foram cortadas).

Houve alguns acertos, no entanto. Emily Blunt como a mulher do padeiro rouba a cena desde o primeiro instante, batendo todos no meio no caminho, seja Tracy Ullman ou mesmo Anna Kendrick, a atriz da Broadway que fez vários Sondheim no palco e que destoa do restante do elenco. Blunt e James Corden, o padeiro, estão ótimos na mais famosa música da peça, No One Is Alone. A bruxa, que na peça é uma gozação sobre a superproteção das mães judias, torna-se nessa versão a inevitável “Meryl Streep interpretando”, essa enjoativa entidade da Era das Celebridades, mas a atriz entrega bem a canção Stay With Me. Esse é o melhor do filme: a música de Stephen Sondheim. O início, um diabólico prólogo de 15 minutos com todas as personagens e o bordão I Wish, está lá quase intacto e só soa implausível quando o diretor faz interferências desnecessárias para mais uma vez ressaltar a presença de Streep.

No teatro, Into the Woods teve classificação livre, onde crianças e adolescentes podiam entrar, e a profundidade da concepção é aceitável, o que encantava eram sua estranheza e morbidez; no cinema não pode. Ou melhor, não nessa concepção reducionista de cinema, talvez porque seja difícil vender para um público amplo algo tão ambivalente – cá para nós, o segundo ato original é um massacre. Veja a que ponto chegaram os produtores no processo de facilitar a trama. A desaparição de uma personagem, o Homem Misterioso, teve seu lado positivo, pois eliminou o narrador, mas furou a história em vários pontos: o menino vende a vaca pelos feijões mágicos apenas por ingenuidade; a vaca, que havia desaparecido no bosque, é reencontrada como que por encanto; o homem misterioso não morre quando o feitiço é desfeito e, quando aparece pela primeira vez na segunda parte, a cena é gratuita e ridícula – a música também sumiu.

O fato é que Rob Marshall e a Disney tinham um material em mãos que era uma tentação para se fazer algo leve, ligeiro, alegre e descartável. Foi o que optaram fazer, disvirtuando o original, deixando a narrativa incompreensível por vezes, criando cenas forçadas e despropositadas para ajeitar a parte menos digerível. Rob Marshall não faz escolhas fora do padrão – Tim Burton é quem faz. Marshall não é conhecido pela audácia: em Memórias de uma Gueixa (Memoirs of a Gueisha, 2005), botou um elenco de atrizes chinesas mais conhecidas do público para interpretar japonesas e mandou os fatos históricos para as cucuias no afã de garantir a bilheteria. Coerência não é bem sua praia. Ele é uma cria do sistema e nas entrevistas parece não ter grandes problemas com isso. Para um coreógrafo de pouca ou nenhuma reputação, está ótimo nessa nova carreira de diretor de encomenda.

Marshall escolheu filmar nos mesmos estúdios em Londres onde Tim Burton fez seus últimos cinco filmes.

Comentários (18)

Carol L. | sexta-feira, 30 de Janeiro de 2015 - 15:20

Não sei como Rob Marshall continua conseguindo emprego. Depois de 3 filmes ruins seguidos e um fracasso de bilheteria com Nine...

Rodrigo Giulianno | sexta-feira, 30 de Janeiro de 2015 - 15:22

Essa á a famosa Carol do tópico clássico?

Maysa Souza Guillen | quinta-feira, 19 de Fevereiro de 2015 - 20:27

É impressionante como uma mesma obra de arte pode causar efeitos tão antagônicos nas pessoas. Particularmente, gostei muito do filme, como já gostava demais da peça. A direção de arte é magnífica e os arranjos musicais (Jonathan Tunic e Paul Geminiani, colaboradores de Sondheim desde os anos 60) dão ainda mais grandiosidade à partitura original. Bomba pra mim foi a catástrofe que Tim Burton fez de Sweeney Todd, outra masterpiece teatral de Sondheim. Escrita nos anos 80, portanto muito antes desta onda de reinterpretação dos contos de fadas, Into the Woods fala, na verdade, sobre os ritos de passagem da alma humana. Do que se deseja ao que se alcança, da infância à vida adulta, da ilusão da fantasia ao choque da realidade. De como criar seus filhos, do que dizer a eles, de tentar protege-los do mundo. Que aliás é o que tenta fazer A Bruxa com sua filha adotiva Rapunzel. À principio uma vingança que se transformou num laço de afeto. A superproteção de uma mãe insegura. O final desta mesma Bruxa se dá quando ela resolve assumir todas as culpas das personagens ditas "inocentes" na história e assim, num misto de cólera e auto sacrifício, implode-se diante de todos. Embrenhar-se nos caminhos da floresta, significa mergulhar no desconhecido, de onde se pode retirar uma série de novas experiências. Aprendizado, crescimento, amor, mas também tristeza, penar e morte. Não é um musical fácil onde as músicas são apenas acessórios da história, mas sim, parte integrante dela. É o estilo do autor. O que se canta são os diálogos do filme. Se não gosta desta linguagem, melhor não ir ao cinema. Aliás, recomenda-se a qualquer pessoa informar-se sempre do estilo que vai assistir antes de entrar no cinema. Pensei que isto fosse bastante óbvio, mas pelos comentários, percebo não ser. Com algumas poucas diferenças do texto da peça, Into The Woods para mim ainda é uma obra inquietante. Daquelas coisas que só serão reconhecidas talvez daqui a alguns anos ou décadas. Não seria a primeira vez, nem a ultima no mundo das artes.

Faça login para comentar.