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Críticas

Cineplayers

Espelho de ontem, cinema de sempre.

10,0
Eu conheço as ruas de Campo Grande. Nasci nesse bairro da zona oeste e não foi uma 'bela infância', muito menos é uma 'bela maturidade'. Na verdade, viver em Campo Grande pra mim há muitos anos significa querer ir embora de Campo Grande, conhecer novos mundos, desbravar o adulto que ainda não consegui ser e deixar pra trás o passado. No passado que Campo Grande representa pra mim, temos o bullying da infância que sempre sofri na minha rua, na minha escola, e que até hoje me faz evitar essa rua ou aquela. Aos 20 anos, Campo Grande começou a ficar pra trás; fui trabalhar longe, abriu-se pra mim a amplitude da cidade, chegaram os amigos que ficariam até hoje, o trabalho o mais longe possível me levou de Campo Grande. Fui e voltei poucas vezes, e agora me vejo ainda lá.

Quando a cineasta Sandra Kogut anunciou um filme chamado Campo Grande, óbvio que imaginei que ela tinha concebido uma história na capital do Mato Grosso do Sul, até com uma certa lógica tendo em vista que o longa anterior da autora tinha origem numa obra de Guimarães Rosa (Mutum). Jamais poderia imaginar que o lugar que me viu crescer poderia servir de inspiração para algo em arte, principalmente fosse o foco de um filme tão delicado, humano e que me jogasse de volta para a infância que eu queria/quero esquecer. Eu sou o avesso do Ygor, quero partir sem olhar pra trás. E o filme vem mostrar em uma história de reencontros (entre mãe e filha, entre irmãos, entre mãe e filhos), o reencontro de uma sensibilidade tão singela e acessível no nosso cinema, que há muito não era o mote principal de uma produção nossa, não tão bem sucedida assim (se junta a próxima estreia A Despedida, de Marcelo Galvão, nessa seara).

Ygor e Rayane procuram um mãe desaparecida, que precisou desaparecer, com a promessa de volta. Regina também preferia desaparecer em meio ao redemoinho que se avoluma na sua sala de estar, mas fica por Lila, mesmo que essa não necessariamente se importe com a escolha da mãe. Quando Ygor e Rayane chegam a sala de Regina, essas quatro personagens terão de encarar um futuro que não se sabe quando chega nem qual será. Mas será, porque Regina precisa colocar alguma ordem no caos. E é nesse reencontro final, entre essa "nova mãe" e esse "novo filho", esses Dora & Josué versão 2016, que as descobertas mais intrínsecas serão feitas, em cada um deles. E em cada espectador. Mas será que Regina e Ygor já não eram aquilos mesmo, e se salvaram mutuamente de um afogamento graças aos seus dias, à sua viagem, ao seu olhar? A cidade partida volta a marcar território, e dessa vez as classes sociais não estão sozinhas pra demarcar esse território; a cidade que Zuenir Ventura descreveu também rachou em obras, construções irregulares e ocupações desmedidas, maculando até mesmo a geografia que ainda restava. Um cartão postal prestes a rasgar.

Uma das coisas mais incríveis de se olhar para Campo Grande é como Kogut voltou a embarcar no mote dos protagonistas mirins observando o mundo a sua volta e não apenas acertar pela segunda vez, como principalmente construir filmes que dialogam ao mesmo tempo que buscam lugares diversos enquanto peças de cinema. Seu roteiro descortina diversos conflitos em um (um?) mote, uma mesma mensagem com diferentes olhares e destinos, com desenhos de ação e personagens exemplares, um caldeirão de adultos, crianças, adolescentes, classe média, classe baixa, carências, angústias, dores, saudades, necessidades... são tantas denominações diferentes, todas buscando. E se Rayane do Amaral e Julia Bernat tem belos desempenhos, o mesmo não podemos dizer de Carla Ribas e Ygor Manoel. Pelo simples fato de que belo é muito pouco pra definir o que dois artistas de idades e origens tão diferenciadas são capazes de entregar.

Eu lembro de quando vi Campo Grande a primeira vez, ano passado durante o Festival do Rio bem longe do lugar onde moro. Bem longe do túnel de pedestres por onde Regina passa e por onde eu passei tantas mil vezes, bem longe da rua onde mora a avó de Ygor, a rua acima da minha. Enquanto escrevo esse texto, fico sabendo que Campo Grande enfim vai chegar ao lugar onde ele mais precisa estar: Campo Grande. E lá no fundo do peito do cara que sempre se envergonhou de onde mora, lá dentro do cara que sofre toda vez que precisa "abandonar o mundo e voltar pra casa", lá no íntimo de alguém que não quer mais estar lá porque sua vida há muito não é lá, esse cara chora... e agradece a Sandra Kogut por transformar a sua infância triste em pontada de orgulho.

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