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Canção Sem Nome

(Canción sin nombre, 2019)
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Críticas

Cineplayers

Fantasmas sem cor

8,0

Tirando logo o elefante da sala: sim, Canção sem Nome ecoa imagética e tematicamente em Roma, mas existem pontos de divergências a enriquecer o longa de Melina para além de uma comparação boba.

Melina Leon tem um projeto de cinema político-emocional calcado na poesia das imagens, que são remetidas especificamente por escolhas técnico-narrativas, onde todas se comunicam e complementam mutuamente. Ao escolher rodar seu filme em preto e branco, a cineasta não pretendia embelezar seu longa, mas envelhecer aquelas relações, entristecer aquelas imagens, adornar de melancolia suas intenções estéticas. O próprio 4 x 3 escolhido como janela de filmagem/projeção do filme tem a função habitual de prender seus personagens em uma realidade que os oprime, retirando os campos de horizonte narrativos. Mesmo os planos de construção que primam pela poesia cênica, com esse enquadramento tendem a encerrar em um escopo suas possibilidades. 

O filme abre contextualizando a ação em 1988, depois de situar o contexto sócio-politico de um Peru devastado por governos castradores e totalitários, agregando a essa História de horror outras tradições locais, como os rituais tradicionais de vilarejos andinos. Aos poucos, essa assolada percepção de rememoração cultural em oposição de tradições dá lugar ao mais absoluto terror, em escala universal: Georgina é uma jovem mãe que tem seu filho roubado após o parto, ficando à mercê de um excruciante périplo burocrático em busca de um bebê com o qual ninguém se importa. Esse é o pulo de 'Canção sem Nome', saindo de uma situação de desespero local para um alcance macro.

A paleta de cores alcançada pelo fotógrafo Inti Briones (de Vazante e Hebe) não é um predomínio do preto e do branco sem contraste. Melina trabalha em seu filme com personagens-fantasmas, pessoas desgarradas de qualquer conceito empático de sua época, transformando-os em figuras errantes e abandonadas em seus núcleos de roteiro. Georgina é uma mãe verdadeiramente traumatizada com o qual ninguém assume responsabilidades; Pedro é um jornalista imerso em sua particular incapacidade de sair do... casulo. Essas figuras solitárias em seus dramas se encontram e os potencializam, reverberando os temas que Melina propõe. E através desse paralelo, a mise-en-scène trabalha a fotografia sob um prisma muito especial, trazendo o espectador para o universo opressivo onde tudo aquilo é vivido.

Uma das cenas onde o trabalho de Melina fica evidente é na travessia de barco de Pedro junto a uma estranha que pode representar alguma espécie de perigo a ele. Em constante mutação, é nesse momento que o filme capta num plano-sequência os aspectos mais prodigiosos de sua câmera. Afastando e aproximando a imagem, o plano ora se fecha, ora expande sua ação, em captação genial. Embora o filme possua inúmeras cenas onde Melina se revele uma exímia contadora de histórias e tradutora da mesma em imagens (como no pas-de-deux de desejo entre Pedro e seu vizinho, ou no 'travelling' que acompanha as tentativas de Georgina conseguir ajuda no prédio onde sua tragédia começou), o filme tem consciência do poder imagético dessa cena citada especificamente e a exibe como um troféu, ainda que pudesse ter enxugado os aspectos particulares da vida de Pedro para conseguir mais foco para a trama, que ligeiramente parece inchada.

Aos poucos, o longa de Alfonso Cuarón se transforma em uma sombra distante e um motivo forte para essa dissociação é a presença de Pámela Mendoza capitaneando o projeto. Ainda que o elenco do filme seja acima da média, é no rosto e no corpo de Pámela que reside todo o manancial de emoções e entrega do longa, e é através dela que o acesso ao filme se estabelece. De nada adiantariam os acertos de direção e de roteiro se o material não fosse emoldurado por algo tão delicado e desolador quanto a presença da atriz. O drama de Georgina parte de um aspecto abrangente e factual para tocar profundamente e sublinhar o olhar de Melina para aquele momento do seu país. Com isso, investiga os mitos locais e o terror real vivido pelo Peru no período ao se permitir olhar para toda essa potência de destruição e enxergar os seres humanos por trás de cada dor.

* Visto no 29º Cine Ceará, 2019

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