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Críticas

Cineplayers

A delicadeza da atração.

9,0
Por entre passantes em uma loja de departamentos podemos observar, com segura distância, a troca de olhares da garota do balcão de brinquedos com uma cliente elegante perdida no frenesi das compras de natal. Ali se ascende a fagulha que despertará um sentimento entre a jovem vendedora Therese (Rooney Mara) e a rica dona de casa Carol (Cate Blanchett). Durante toda a duração de Carol (idem, 2015), novo filme de Todd Haynes, o espectador é mantido nessa distância, acompanhando a lente do cineasta escondida por vidros embaçados, reflexos de luz, vitrais. Sob essa perspectiva, as duas mulheres ganham um ar de mistério e encanto que simplesmente fascina pela sua sutileza e finesse. 

Conhecido pelo bom gosto e pelo classicismo, Haynes já havia se aventurado pela década de 1950 para revisar o melodrama da Hollywood clássica em Longe do Paraíso (Far From Heaven, 2002), uma das mais belas homenagens a nomes como Douglas Sirk, e agora o diretor volta a esse universo para contar outra história de paixão proibida. Carol é um pouco mais ousado, pois se baseia no romance de Patricia Highsmith sobre duas mulheres que se relacionam em um período de extremo conservadorismo. Lésbica ainda não assumida até então, Highsmith publicou o livro sob um pseudônimo como forma de desabafar seus sentimentos, compartilhar a solidão do seu desejo e extravasar a frustração de viver em um mundo regido pelas leis do homem.

Haynes capta bem a essência do livro e foge dos clichês de filmes gays. A lesbiandade retratada em Carol, embora fundamental na trama, é apenas uma parte pequena diante de uma mensagem que encontrará ecos maiores na misandria. Nesse universo descrito por Highsmith, os homens são banais, fracos e usam de sua autoridade para forçar relações e sentimentos. Enquanto o marido de Carol simplesmente não aceita a rejeição da esposa, o namoradinho de Therese se diz apaixonado por ela, quando na verdade nem sabe do que se trata o sentimento. As personagens femininas em Carol são construídas com tanta ternura e complexidade que diante disso os homens parecem impotentes, pequenos. Vencer nesse mundo masculino é a grande questão de Carol, não exatamente o romance em si.

O diretor não se obriga a recorrer a estouros dramáticos e sofrimentos exagerados, pois tudo é muito simples na lógica feminina oferecida pelo livro de Highsmith. As mulheres não são desesperadas, histéricas ou patologicamente carentes. Pelo contrário, são curiosas, intuitivas, evoluídas. Dentro desse contexto, não se vê a necessidade de dramatizar demais e por isso o filme foi tão erroneamente apontado como frio, contido. Mas não estamos falando de um filme de amor, e sim da história de duas pessoas que se conhecem, se sentem atraídas, e começam a se descobrir, independente do sexo ou de fatores sociais, apenas o princípio de um sentimento. Respeitosamente, Haynes se coloca na posição de observador distante, se escondendo por trás de objetos cênicos e dando espaço para que Therese e Carol fiquem à vontade, por assim dizer, e jamais forçando uma tentativa de melodrama de amor proibido. Todo o resto é puro deleite visual, desde a cenografia, passando pelos figurinos, recriação de época e trilha sonora. 

Nesse palco montado por Haynes só há espaço para as duas protagonistas, e por isso o diretor enaltece Rooney Mara, que aqui personifica a imagem frágil e ao mesmo tempo elegante e misteriosa de uma Audrey Hepburn, enquanto Cate Blanchett brilha em uma composição sutil e precisa, digna das maiores divas do cinema clássico americano. A figura feminina é explorada de forma minimalista, delicada, de rostos e corpos e suas formas, cores, curvas, conforme a relação de Therese e Carol se estreita, valorizando os olhares furtivos, os meios sorrisos, os toques suaves e por fim a plena exultação da beleza e plenitude da matéria feminina. Com esse suporte oferecido pelo cineasta, numa das relações mais apaixonadas e simbióticas entre câmera/atriz dos últimos anos, fica fácil para as duas brilharem.

Os ecos narrativos e estéticos de Desencanto (Brief Encounter, 1945), de David Lean, ou a semelhança temática com O Sorriso de Mona Lisa (Mona Lisa Smile, 2003) engrandecem ainda mais o filme e o colocam no patamar das obras mais belas sobre a feminilidade. As metáforas encontradas nesse meio são contundentes, desde o túnel que as duas atravessam de carro rumo a uma paisagem de luz, como indicação da liberdade da relação, até a própria viagem rumo ao oeste ensolarado, tão tradicionalmente ligada à redescoberta e autoconhecimento no cinema americano.  Mas mais do que uma análise sobre os desafios de uma mulher dentro de uma sociedade machista, ou sobre a homossexualidade enrustida, ou sobre a libertação pessoal, Carol vai além e retrata a figura feminina por si só, independente de qualquer fator externo - apenas observa a mulher em toda a sua grandeza natural.

Comentários (7)

Matheus Bloinski | domingo, 24 de Janeiro de 2016 - 13:52

Excelente crítica!
"As mulheres não são desesperadas, histéricas ou patologicamente carentes. Pelo contrário, são curiosas, intuitivas, evoluídas. Dentro desse contexto, não se vê a necessidade de dramatizar demais e por isso o filme foi tão erroneamente apontado como frio, contido."
Foi exatamente o que eu senti ao ver o filme sendo descrito como frio/insensível.

Paulo Matheus | domingo, 24 de Janeiro de 2016 - 14:25

que texto, cara!

tive a mesma ótica em relação ao filme. quem o julga como frio é porque tem algum coisa errada.

Paulo Lima | terça-feira, 16 de Fevereiro de 2016 - 17:06

Muito boa crítica!

Carol é um dos melhores filmes de 2015, e a sua temática transcende o lesbianismo por enfim mostrar mulheres fortes e delicadas ao mesmo tempo como não é comum nos filmes hollywoodianos que ainda insistem em estereotipar as mulheres com personagens femininas frágeis e estéricas Parabéns ao Todd Haynes e as belíssimas atuações da Cate Blanchett e da Rooney Mara.

Alexandre Marcello de Figueiredo | segunda-feira, 11 de Abril de 2016 - 19:04

Gostei da forma sutil em que foi abordada a relação homossexual entre as protagonistas, que estão ótimas no filme.

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