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Críticas

Cineplayers

Lucio Fulci e o prazer de fazer Cinema.

8,0

Fulci certamente é um dos diretores que melhor soube utilizar o Cinema como veículo de suas obsessões pessoais. Mesmo em seus piores momentos é perceptível o fascínio do diretor para com seu material, e este deslumbramento parece tomar conta da imagem de uma forma contagiosa. Seja em um close de gore ou na utilização da nudez feminina, cada quadro de suas cenas-chave, de um filme ou do total de sua obra, transpira acima de tudo um amor pelo ofício de cineasta que transforma a selvageria e a grotesquidade destes filmes em um momento íntimo e quase romântico de desnudamento pessoal.

É sobre este amor incondicional e bizarro que se constrói Cat in a Brain, o mais extremo e visceral dos filmes de Fulci e que visivelmente serviu à época como um acerto de contas dele para com seu Cinema. O diretor já estava particularmente desgastado em 1990, mas para além de ser um de seus últimos filmes e estar locado em um momento não muito bom de sua carreira, o que realmente faz deste exercício um dos momentos mais impressionantes da filmografia do italiano é justamente seu alto teor de pessoalidade. A começar pelo fato de Fulci construir o filme todo especificamente em torno de seu corpo e de seu ofício, afinal é um filme sobre um diretor de Cinema chamado Lucio Fulci (interpretado por ele mesmo) que encontra-se atormentado pelas imagens de horror que pôs no mundo através de seus filmes.

Tal plot prenuncia o que à regra seria um filme sério, mas como ainda falamos de Lucio Fulci é evidente que tudo o que existe de grave em seu discurso é transmitido ao espectador através de uma inusitada subversão. O estudo psicológico que Fulci propõe em seu primeiro ato, deslavadamente mentiroso em tudo o que apresenta, nada mais é do que mero pretexto para mais uma de suas aventuras sádicas de utilização da imagem e da narrativa como forma de ilusão, partindo em busca do que há de mais extremo na ficção. Recortes de filmes antigos, sonhos, pesadelos, tudo o que há de extra-diegético no que diz respeito à linearidade da trama é gradativamente condensado a ela e projetado ao espectador sob forma de um corpo novo, impossível de ser definido.

Para Fulci o Cinema é como uma brincadeira de quebra-cabeças. A diferença, porém, é justamente que através destes pequenos recortes é possível extrair-se imagens completamente renovadas em relação ao que havia apresentado anteriormente através delas, especialmente no que diz respeito ao sentido empregado até então. Se em um primeiro momento vemos em Cat in the Brain um filme sobre um homem atormentado por sua própria criação, descobrimos ao final que tudo na vida deste personagem (e consequentemente no filme) não passava de manipulação de um terceiro (que no caso é representado pelo mais importante contato deste personagem com a “vida real”) elemento. A metalinguagem em Fulci talvez nunca tenha sido tão intensa, afinal, é exatamente sob esta relação que se constrói o Cinema.

Mas, mais do que a metalinguagem em si, o que realmente se destaca em Cat in the Brain é como Fulci equipara através desta metalinguagem os níveis de sadismo e masoquismo de seu filme a ponto de anulá-los unicamente pelo divertimento que palpita da ousadia deste projeto, podando também todo e qualquer signo que possa existir dentro de suas imagens e fazendo-as, portanto, senhoras de si. O que sobra ao final de tudo, seja especificamente na trama ou no próprio filme pensado à distância, são a violência e a manipulação, ou seja, nada além as preferências de Fulci e dos elementos que mais despertam este prazer de filmar no diretor - e que domina melhor do que qualquer outro.

E é da habilidade em utilizar estes elementos e da sensação de divertimento absoluto que o diretor exala ao brincar com eles que surgem as principais virtudes deste Cat in the Brain. A exemplo de Dario Argento, diretor da mesma linha e ninhada de Fulci e um dos maiores artesãos da arte cinematográfica de sempre, os melhores momentos da filmografia do diretor são justamente aqueles em que ele mais aparenta ter se divertido e se libertado das amarras cinematográficas tradicionais. Cat in the Brain pode não ser tão inventivo e indisciplinado quanto Terror nas Trevas, possuir a concepção de tempo de um Zombie ou fazer da hipocrisia e do corrompimento motivações tão fortes e sarcásticas quanto O Segredo do Bosque dos Sonhos, mas como exemplo do prazer de se fazer Cinema é com certeza um dos filmes mais relevantes a serem lembrados.

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