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Críticas

Cineplayers

Spielberg faz um arrebatador filme sentimental, repleto de referências ao cinema clássico e a sua própria obra.

8,0

Cavalo de Guerra (War Horse, 2011) é um filme de melodrama aos moldes do cinema clássico, mas, apesar do tradicionalismo de sua forma e apresentação de valores morais, conta com um enredo um tanto quanto atípico e bastante imaginativo no que compete à escolha do personagem central: somos apresentados a Joey, um cavalo comum, que não é de raça ou de aparência vistosa, sequer possui as qualidades procuradas em um cavalo. Mas este “homem sem qualidades”, típico anti-herói da ficção do século XX, é apresentado aqui na figura do “escolhido”, do ser vivo predestinado a uma vida excepcional, um animal munido do arquétipo do herói, incumbido de uma saga epopeica de proporções homéricas – quiçá bíblicas.

A história é uma adaptação do romance de Michael Morpugo, que também virou peça teatral. Ambientado na 1ª Guerra Mundial, traz em ficção a sofrida história de um cavalo, mas que reflete a realidade de mais de quatro milhões de cavalos que de fato morreram no conflito. No filme, as primeiras grandes tomadas aéreas que se alternam em fusões formam uma visão de cima, onipotente e onipresente, e exibem uma vasta paisagem  campestre até se aproximar do nascimento do cavalo Joey no seio de uma humilde família de trabalhadores rurais. Essas imagens já nos dizem muito: uma alusão a um ponto de vista de um suposto Deus, a intervenção divina, o plano subjetivo que enxerga um mundo abaixo e enviou uma criatura especial destinada a uma missão. Poucos momentos  após o seu nascimento, intuitivamente, o jovem cavalo já se levanta sozinho e está em pé, lutando por seu lugar e sobrevivência nesse mundo – uma virtude e uma capacidade que o homem jamais teve em tão pouco tempo de vida.

Já nas primeiras cenas tornam-se evidentes duas intenções do realizador. A primeira é a tentativa de mitificar o cavalo, atribuir a ele uma espécie de alusão ao nascimento, a designação, e posteriormente o calvário e a redenção de Jesus Cristo. A segunda está na ambientação, nos planos, na forma de iluminar e enquadrar. Temos imagens de janelas e portas da rústica casa de trabalhadores rurais emoldurando as colinas, céus repletos de formações de nuvens que carregam tempestades iminentes, áreas de agricultura que provém a sobrevivência, campos do início do século XX, ainda preservados dos efeitos visuais e morais da revolução industrial e urbanização que viria a seguir. A fotografia do filme é bastante inspirada na tradição pictórica norte-americana, a pintura de paisagens do século XIX, em especial nos emblemáticos afrescos de Albert Bierstadt, que trabalhava muito com as formações de nuvens, contraste entre as cores do céu e os tons esverdeados da terra. “Queríamos que o cenário fosse um personagem”, foi o que disseram Steven Spielberg e Janusz Kaminski, diretor e diretor de fotografia, respectivamente, ao The New York Times. O grande mestre nessa arte foi John Ford, que foi mentor de outros que partiam desse pressuposto, de Orson Welles a David Lean, e que aqui é notavelmente a maior influência nesse prólogo do filme, que muito nos remete a Era de Ouro do cinema norte-americano, um filme clássico-narrativo que podia muito bem ser dessa época, o que demostra uma grande nostalgia e homenagem ao cinema por parte de Spielberg.

A história se desenvolve a medida que o jovem Abert Narracott (Jeremy Irvine) estabelece uma forte amizade e cumplicidade com o cavalo, um relacionamento cativante que encontra o seu obstáculo quando Joey, o “menino da casa”, tem de ser vendido devido a dificuldades financeiras da pobre família: aqui já vemos movimentos da câmera que se afasta do cavalo por entre as grades e janelas quadrangulares e anunciam seu destino derradeiro: uma menção clara a Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) que numa cena muito parecida também fora vendido na infância rumo a um futuro bastante tempestuoso a partir dali.

Mas é evidente que a questão da amizade, da pureza da relação de crianças com animais ou seres de outros planetas, é uma das grandes características do cinema de Spielberg. O mundo sob o ponto de vista supostamente inocente e sem maldade da criança é um dos motes recorrentes do seu cinema e do imaginário que compõe a sua obra.  De E. T. – O Extraterrestre  (E.T. The Extra-Terrestrial, 1982) a A. I. – Inteligência Artificial (A.I. - Artificial Intelligence, 2001) , de Jurassic Park – Parque dos Dinossauros (Jurassic Park, 1993) a Império do Sol (Empire of the Sun, 1987) temos a vida pela ótica das crianças, e o modo ingênuo, enfaticamente bucólico, com que lidam com a realidade. É privilégio das crianças e jovens, na visão do cineasta, o primeiro contato, a antecipação em perceber e desvendar uma verdade imaculada. No livro dedicado a vida e obra de Steven Spielberg de Clélia Cohen, da série Masters of Cinema editada pela publicação francesa Cahiers du Cinema, há um estudo sobre sua biografia, que aponta que Steven foi uma criança muito introspectiva e solitária, um nerd que era alvo de chacotas na escola, que cresceu com um pai absolutamente ausente (este era um engenheiro de software), situação agravada pela separação de seus pais. Spielberg diz que quando criança se sentia como um “alien”. Certamente são fatores que exerceram influência nos temas de seus filmes. Spielberg é um contador de histórias populares, mas também é o cineasta da iminência do fim do mundo, que acredita na família como o porto seguro, nas relações afetivas como o ponto de equilíbrio da vida, e baseia muito de seus filmes na ideia de retorno, de regresso a um ponto de estabilidade, a eterna Odisseia de Ulisses. É sem dúvida um cineasta de moral cristã, de discursos conservadores e de indubitável apelo popular. E a relação de Cavalo de Guerra com Império do Sol especificamente vai muito além, pois contam com um argumento muito parecido, fazendo de Cavalo de Guerra uma visita de Spielberg à sua própria vida e ao seu próprio cinema: a separação entre entes queridos em tempos de guerra, e a luta pelo reencontro, a infindável busca pelo caminho de casa.

Joey vai à guerra, e o que vemos a partir daí é a saga do cavalo no conflito, os horrores do confronto, a bestialidade e irracionalidade pela perspectiva do animal, aparentemente mais consciente e mais dotado de discernimento perante a  ignorância e irracionalidade  promovidas pelos homens.  As desventuras são muitas. Joey está a mercê das circunstâncias, vai parar nas trincheiras de batalha e sua via crúcis caminha rumo a uma literal crucificação de messias que veio para salvar os homens – justamente no único momento as tropas inimigas demostram algum tipo de humanidade em comum. Um filme de mensagem antibelicista aos moldes do cinema se guerra de Spielberg, sem dúvida. Mas como toda obra é, em última instância, reflexo do seu tempo, curioso traçar um paralelo entre a epopeia do cavalo e do jovem para retornarem a casa, e o governo de Obama finalmente cumprindo a promessa e retirando todas as suas tropas do Iraque, os últimos soldados remanescentes voltado aos seus lares nos EUA. Talvez seja esse o ponto de reflexão, precisamente aí a grande intenção do diretor com este filme.

A violência e irracionalidade apresentado sob a perspectiva de um equino é evidentemente um argumento bastante original e raro, ainda mais no cinema de Hollywood, mas não é uma ideia nova no cinema – existem vários filmes que vagueiam por essa premissa, de O Corcel Negro (The Black Stallion, 1979) ao recente O Cavalo de Turim (A torinói ló, 2011). O animal denunciando a bestificação da humanidade encontra no cinema o seu  caso mais emblemático em A Grande Testemunha (Au Hasard Balthasar, 1966), do cineasta francês Robert Bresson. Neste filme somos apresentados ao burrico Balthasar, da mesma forma desde o seu nascimento até a sua vida adulta, onde está fadado a se tornar burro de carga, um mártir vítima  de opressão, humilhação, exploração e violência – uma metáfora a vida de todos os homens, uma alusão ao calvário de Jesus. Bresson tinha uma visão muito particular de cinema. No seu livro de aforismo e memórias Notas Sobre o Cinematógrafo (Notes Sur Le Cinématographe, 1975), traduzido no Brasil pelo documentarista Evaldo Mocarzel, fica evidente que a intenção do diretor, um fervoroso católico jansenista, era, por meio de seus filmes, buscar respostas para a vida, indo além: encontrar a Deus por meio do cinema.

A diferença entre Cavalo de Guerra e A Grande Testemunha está em suas formas: Bresson acreditava em um cinema que faz um registro do real, da vida e de Deus se manifestando de forma velada em pequenas ações, em instantes de eternidade em ações prosaicas do cotidiano. Na câmera, ou melhor, no cinematógrafo que capta a essência do mundo passivamente, como um voyeur. Spielberg é artífice da linguagem, da montagem invisível, da manipulação da narrativa com cortes de imagem e movimentos de câmera, do uso da trilha  para carregar cenas dramáticas, alguém que usa o vocabulário cinematográfico para construir sentido e emoção. É um mágico, um manipulador, sem dúvida. Tal como Alfred Hitchcock foi. O truque do velho inglês era o de habilmente gerar suspense. O de Steven Spielberg fez com que ele se tornasse o diretor de cinema mais conhecido de todos os tempos: fazer a plateia se emocionar.

Nesse sentido, Cavalo de Guerra é uma espécie de súmula do cinema do diretor. Spielberg não é nenhum profissional iniciante, tampouco alguém que não sabe o que está fazendo, tem domínio narrativo e certamente estava consciente desde o princípio que com este filme poderia ser alvo de críticas, por excesso de sentimentalismo e tom melodramático. Mas sabia também que este seria um filme capaz de levar multidões ao choro nas salas de cinema. Spielberg conhece muito de cinema, e este talvez seja a sua obra mais pessoal, mais repleta de referências aos filmes que o inspiraram a ser cineasta. Estão ali de forma velada inumeráveis menções a trechos de filmes de King Vidor, John Ford, David Lean, Victor Fleming, David O. Selznick, Akira Kurosawa, Teinosuke Kinugasa, e até mesmo um final apoteótico visualmente muito semelhante a cena final de ... E o Vento Levou (Gone With the Wind, 1939). Interessante notar que esses são tempos de nostalgia dos diretores que foram da "nova onda" do cinema norte-americano, da renovação de Hollywood nos anos 70, vide os recentes trabalhos de Scorsese, Woody Allen, assim como do próprio Spielberg. Na transição para o 3D, na época que marca o fim da película e o método analógico de captar e exibir, da democratização digital e dos meios de produção, o cinema volta-se para o seu passado. A necessidade do cinema em se auto afirmar como arte de tradição. Cavalo de Guerra é assumidamente um melodrama, este gênero literário que ganhou força no século XIX e que foi apropriado pelo cinema, justamente o responsável por a invenção do registro de imagens em movimento se tornar fenômeno de massa, arte e indústria, respeitada e consumida pelo público. Mas certamente Cavalo de Guerra está muito além de ser um filme formuláico com emoções pré-fabricadas:  é uma homenagem nostálgica ao cinema da era clássica de Hollywood, e um balanço, uma síntese do cinema de Steven Spielberg. Um filme maduro do cineasta que tem vocação para filmes dessa natureza. Talvez não seja um ganhador de prêmios, de grande bilheteria ou mesmo de boas críticas, mas certamente tem tudo para agradar em cheio aos amantes do cinema que não tem medo de se deixarem levar pelas emoções que ele pode proporcionar.

Comentários (9)

Dáiron César Waick Schuck | segunda-feira, 16 de Janeiro de 2012 - 10:46

Realmente, muito boa a crítica. E parabéns pela coragem de tecer elogios a "Cavalo..." já que é quase motivo de linchamente elogiar o filme.

Fabio Luis Martins Rafo | terça-feira, 17 de Janeiro de 2012 - 21:35

Ótima critica, me despertou a vontade de ver o filme, que não me despertou interesse pela premissa.

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