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Chinatown

(Chinatown, 1974)
8,6
Média
745 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

Polanski conseguiu criar o que provavelmente pode ser considerado o único filme noir da era contemporânea do cinema.

8,5

Chinatown é um dos filmes mais difíceis de serem resenhados em toda a história da sétima arte. Não por ser demasiadamente intrincado ou então incompreensível, mas sim por não nos permitir uma crítica sequer a seu conteúdo ou desenvolvimento. Esta obra-prima de Roman Polanski, tida até os dias de hoje como um dos grandes triunfos do cinema norte-americano, simplesmente não apresenta falha alguma durante todos os seus 130 minutos de duração. É uma fita densa, instigante, moralmente complexa e cheia de pequenos e soturnos detalhes que permeiam um dos textos mais bem lapidados já escritos para o cinema, que, além de remeter diretamente aos não menos espetaculares roteiros dos principais trabalhos do período auge do filme noir, nas décadas de 1940 e 1950, ainda acrescenta ao subgênero uma série de elementos inéditos, que fazem deste um trabalho particularmente singular. 

Na verdade, creio que Chinatown seja o único trabalho feito subseqüentemente ao término do movimento (normalmente atribuído ao ano de 1958) que realmente é um genuíno filme noir, mesmo que subverta um dos elementos mais importantes e de maior inconfundibilidade encontrados no gênero: a fotografia em preto-e-branco. O impressionante trabalho do fotógrafo John A. Alonzo, que também trabalhara com Brian De Palma, no excepcional Scarface (1983), tenta se abster ao máximo dos extremos contrastes de claro e escuro, marca inconfundível do noir (cuja tradução do francês quer dizer, justamente, novela escura – porém, o sentido é dúbio, claro), empregando às imagens uma luz difusa e pouquíssimo acentuada, quase como se estivesse fotografando uma filme de faroeste – o que é perfeitamente compreensível, já que, desta forma, dá uma maior entonação à região desértica em que se encontra a cidade de Los Angeles.

Entretanto, afora este diferenciado trabalho fotográfico, Chinatown é noir até o osso. Emaranhando o espectador em meio a uma trama complexa e cheia de reviravoltas, o filme constrói sua atmosfera acerca dos principais elementos deste tipo de cinema: inicialmente, somos apresentados à figura do detetive particular, em um trabalho de composição excepcional de Jack Nicholson, que acabara de terminar um trabalho de investigação conjugal. A caracterização não nega a origem: sobretudos, chapéus, bourbons e charutos fazem parte do retrato da personagem, bem como seu cinismo extravagante e até mesmo defensório. O caráter duvidoso também vem à mente do espectador: normalmente, pessoas com seu perfil são arrogantes e inescrupulosas, o que transforma a compreensão de seus atos em algo ainda mais difícil de ser realizado – afinal, nunca sabemos o que realmente passa por sua cabeça ao tomar uma ou outra atitude. 

Após a conclusão de seu supracitado trabalho, outro cliente chega para lhe atarefar. Dessa vez, a mulher de um milionário proprietário da empresa de distribuição de água da cidade, cujo pedido é de que espione seu marido a fim de concretizar sua suspeita de que este estaria tendo um relacionamento extraconjugal. Seguindo o referido homem durante o período de um dia, Gittes (Nicholson) acaba descobrindo um encontro seu com uma moça, embora note nele um estranho comportamento ligado à construção de um reservatório de água. Até o devido momento, a impressão que podemos tirar é de que Chinatown seguirá à risca as tramas simples, porém interessantes dos filmes que retratam investigações de relações matrimoniais. Porém, é neste ponto que o filme dá uma guinada sensacional, demonstrando ser uma das fitas policiais mais intrigantes e bem construídas de toda a história do cinema. 

A partir deste ponto, somos sumariamente arremessados em um imprevisível jogo de aparências, onde nada parece ser o que realmente é (mais noir, impossível). Após ter sido noticiado pelos jornais a “escorregada” de Mulwray (o marido investigado), uma mulher (Faye Dunaway), tipicamente femme fatalle, chega a seu escritório dizendo ser a real esposa do indivíduo, indignada com o estardalhaço feito em cima do caso. Ameaça processar o detetive, que passa a procurar o tal homem a fim de obter algumas respostas – ele imagina que alguém tenha armado uma cilada para lhe prejudicar. Acaba descobrindo-o morto, atirado em um dos rios secos que circundam a cidade em questão. Intrigado, passa a ir atrás de provas, e a cada passo que dá faz novas e inacreditáveis descobertas, que vão desviando os caminhos da trama de forma raramente vista. 

Para se ter uma pequena noção da dimensão, da complexidade e da inteligência do roteiro de Chinatown, tudo isso que fora apresentado nos parágrafos acima acontece apenas nos trinta minutos iniciais da obra. Um pequeno convite a uma trama que, embora possua incontáveis inversões de destino, mantendo sempre em aberto o real significado das coisas, é completamente e inacreditavelmente coerente. Todos os pontos do roteiro são devidamente conectados, fato que é impressionante em um filme com tantas reviravoltas – vide quaisquer filmes de suspense moderno, cabalmente perfurados por absurdos ilógicos. Isso, somado aos diálogos afiadíssimos e certeiros, implicam na inclusão deste maravilhoso trabalho de Robert Towne em grande parte das seleções de melhores roteiros já escritos. E nada como uma revisão à obra, onde conseguimos notar todas as brilhantes sutilezas de seu texto, para passarmos a apoiar a idéia com veemência. 

Auxiliando Towne na brilhante construção do universo da obra está o mestre polonês Roman Polanski, diretor da obra-prima O Bebê de Rosemary. Seu trabalho em Chinatown é de um refinamento poucas vezes visto não apenas em sua carreira, mas em toda a história do cinema. São raros os diretores que demonstram ter a classe e a sofisticação apresentadas por ele na condução desta obra, sem exagero algum. É impressionante a prioridade com que Polanski filma, a densidade que impõe às imagens da fita. Tudo remete a um trabalho que composição cênica meticuloso e inquestionável, desde a adaptação irretocável do texto até a construção milimétrica dos planos e da sutil movimentação da câmera. Com isso, a narrativa apresenta uma fluência célebre, sem perder sequer um fiapo do potencial apresentado pela história.  

Uma boa demonstração desta narrativa impecável é a aparente facilidade apresentada por Polanski para a condução de uma trama tão intrincada. O ritmo do filme é dotado de uma constância extremamente singular, sem apresentar modificações abruptas em sua fluidez nem confundir o espectador, mesmo em meio ao grande número de reviravoltas e de personagens de caráter dúbio, sem qualquer explicitação de suas motivações. Ademais, também é impressionante como o diretor consegue manter o suspense até os últimos momentos do filme, sem apresentar pistas muito óbvias para a solução do caso e, além do mais, acrescentando à história um final pesado, dramático e que remete a uma forte e cruel atmosfera de entonação sexual, em um dos terceiros atos mais sublimes encontrados no cinema contemporâneo (sim, contemporâneo, vide a classificação em meu último artigo), que, assim como o filme todo, exige muita atenção do espectador, em razão de suas inteligentes sutilezas.

Porém, o número de qualidades da obra não se resume apenas ao resgate da nostalgia, à fotografia, ao roteiro e ao trabalho de direção. Não há como não citar a belíssima trilha-sonora de Jerry Goldsmith, que sem dúvidas faz parte de qualquer compilação de seus grandes trabalhos no cinema, criando um clima místico e tenso fundamental à história. Além disso, vale ressaltar também algumas participações especiais imperdíveis no elenco, como a excelencial e tensa seqüência protagonizada pelo próprio Polanski, onde o diretor corta o nariz do protagonista, e todas as cenas em que John Huston, homem ao qual os especialistas atribuem o início do film noir, surge como um verdadeiro leão das telas para protagonizar um personagem vilanesco sem qualquer resquício de unidimensionalidade, cuja participação na trama é imprescindível para o supracitado e diferencial do ato final.

Por esses e muitos outros motivos, creio que Chinatown não deva ser tratado simplesmente como uma homenagem à época dos filmes noir. Talvez seja pretensiosa minha afirmação, mas acredito que a exclusão desta belíssima obra-prima de Polanski da lista de principais fitas do cinema noir acarretaria em uma perda sensível do brilho atenuante que possui este que é um dos gêneros mais interessantes do cinema norte-americano. É um trabalho completo, que justifica a alusão às belíssimas obras-primas do cinema clássico, como Crepúsculo dos Deuses, A Marca da Maldade, O Falcão Maltês e O Terceiro Homem, e que, além disso, também apresenta características próprias que o definem como um verdadeiro trabalho de autor. Mais uma obra inesquecível do mestre polonês, reconhecida merecidamente até os dias de hoje como um dos grandes triunfos do cinema hollywoodiano. Um filme praticamente sem falhas.

Comentários (2)

Francisco Bandeira | sexta-feira, 08 de Novembro de 2013 - 16:38

\"Falcão Maltês\" (ou \"Relíquia Macabra\") é realmente fascinante o trabalho do Huston no filme. \"A Marca da Maldade\" do Welles é uma enorme prova de sua genialidade, pois abriu mão de algumas características do noir (femme fatale etc) e criou um filme grandioso. \"O Terceiro Homem\" também beira a perfeição. Você citou \"Crepúsculo dos Deuses\", do Wilder... Mas achei que faltou você citar \"Pacto de Sangue\", do mesmo, tido como um NOIR DEFINITIVO! Cito também obras como \"Laura\", do Preminger e \"Embriaguez do Sucesso\", do Mackendrick! Bela crítica, Daniel... Bem merecida para esta grande OP! 😁

Walter Prado | sexta-feira, 08 de Novembro de 2013 - 17:59

Relíquia Macabra é tão superestimado. Os outros citados pelo Francisco, incluindo o magnífico Pacto de Sangue, sim, são grandiosos. Laura nem tanto, mas.

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