Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Organizando o movimento e orientando o carnaval.

7,5

Um ano antes do famoso Maio de 1968 Godard rodou três filmes, entre eles Duas ou Três Coisas que Sei Sobre Ela (2 ou 3 choses que je sais d'elle, 1967) e Weekend à Francesa (Week End, 1967). Mas foi com A Chinesa que o cineasta ganhou ares de profeta ao se aproximar da juventude pré-revolucionária que protagonizaria os episódios de desobediência civil na França do ano seguinte.

Há quem diga que neste filme-panfleto o diretor esteve zombando das intenções políticas da geração que ficou marcada na história como o estopim da contracultura, colocando em xeque a fragilidade de seus atos e pondo às claras o desnível entre seu discurso e sua prática. Aos que assistem ao filme hoje resta a sorte do olhar pivilegiado, que distante do calor da hora pode apreender algo mais sutil que isto, apesar de carregados que estamos pela densa bagagem de opiniões sobre aqueles episódios e suas reverberações.

Um filme em construção” – é o que se lê em azul depois do prólogo onde várias coisas são ditas e o plano de intenções de A Chinesa já aparece resumido. Aqui Godard pleiteia para seu filme não apenas a condição de obra aberta, mas uma continuidade extra-fílmica que o inscreveria na história daquela geração e cujos próximos capítulos não caberiam a ele rodar. Sacada de mestre.

Ele ainda aparecerá em espírito, através de sua voz de comando durante um corte de cena ou como entrevistador durante a primeira parte do filme. A câmera é desmistificada durante uma fala de Jean-Pierre Leáud, assim como o técnico de som ganha um close quando o mesmo ator sentencia: “é por isso que falo!” (porque há alguém para registrar?). A presença da equipe de filmagem e do diretor é mais um dos elementos usados para borrar os limites entre ficção e realidade.

Num apartamento burguês-classe-média um grupo de jovens se reúne durante as férias, aproveitando a saída dos adultos para criar uma célula de estudos do marxismo-leninismo e do famoso Livro Vermelho da Revolução Cultural implementada por Mao Tsé-Tung na China. O livrinho vermelho de Mao será a grande peça com que o cinesta montará trincheiras, canções, jogos e discursos.  Aliás, a direção de arte é uma das jóias de A Chinesa, que mistura o requinte de um serviço de chá aristocrático com uma metralhadora de brinquedo que vira rádio.

Do clássico ao moderno, qualquer repertório nas mãos de Godard vira pop, sejam as idéias de Marx ou uma lousa em branco. Enquanto uma canção cujo refrão “Mao, Mao” (clique aqui para ver) é repetido à exaustão embala os futuros revolucionários na leitura do livrinho vermelho, Yvonne (Juliet Berto) serve o chá a Veronique (Anne Wiazemsky). Nesta relação Yvonne é a garota que chega do campo e aceita todos os trabalhos possíveis para sobreviver na cidade, inclusive a prostituição. Do outra lado Veronique simboliza a classe média francesa em sua sólida construção de cárater através da leitura e interpretação de pensadores clássicos.

O diretor trabalha com estas duas perspectivas de mundo que se contrapõem durante todo filme e onde a personagem Yvonne ocupa o lugar do naïf, espontâneo e meio primitivo, que interpreta o mundo a partir de questões e metáforas práticas sem os elaborados discursos filosóficos de seus companheiros. Examinando algumas categorias do pensamento marxiano, Yvonne é a personagem-alegoria representando a reificação, a transformação do humano em produto, fato confirmado pelo relato de que ela ainda precise se prostituir quando os garotos não vendem o jornal ou não encontram lugar para lecionar. “É uma contradição em si, eu sei. (...) Henri diz que eu sou a prova viva da solução às contradições do povo”, diz a personagem.. Ao definir o marxismo-leninismo, Yvonne o faz sob uma ótica particularíssima que marca seu papel no filme: “quando o sol está se pondo, tudo é vermelho. Depois ele desaparece. Mas no meu coração o sol nunca se põe.”.

Seja pelo peso do texto, recheado de citações e referências à filosófia e à política, ou pelas intricadas relações entre imagem e discurso criadas, A Chinesa não é um dos filmes mais populares do diretor. O tom panfletário, muitas vezes carregado mesmo quando balançeado pelos elementos pop, engata poucos pontos carismáticos de indentificação. Mas enquanto projeto, Godard dá uma aula sobre como produzir um filme estética e politicamente feito para os jovens de 1967. O objetivo era mesmo didático: usar o cinema para falar de política para quem consumia cinema. E naquele momento só uma geração conseguiria digerir o fluxo daquele discurso: a juventude.

Depois de 1967 Godard opta pelo cinema político e o pratica durante os anos do Grupo Dziga Vertov. E ainda que desta fase nos restem poucos filmes, é possível dizer que o diretor nunca mais abandonou o tom de historiador/filósofo do presente, sempre fazendo das imagens um veículo para suas reflexões políticas, como podemos ver em Film Socialisme (idem, 2010)

Há até uma engraçada coincidência entre A Chinesa e Film Socialisme: numa das cenas mais emblemáticas do filme de 1967 Yvonne aparece de chápeu chinês, comendo macarrão em frente a uma bomba de gasolina onde se lê “Napalm Extra”. No filme de 2010 Godard monta uma cena semelhante: a filha da família cuja vida está sendo registrada por uma jornalista aparece acompanhada por uma lhama (?), lendo um livro e usando um Ray Ban também em frente a uma bomba de gasolina onde – parece -  podemos encher o tanque com um combutível-embuste, feito de algo que não é o petróleo. Ou seja, dois momentos históricos condensados num par de quadros de Godard.

Por fim, deixo a fala com que Veronique encerra A Chinesa e que eu corri pra anotar durante a sessão: “É ficção, mas levou-me perto do real”.

Comentários (0)

Faça login para comentar.