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Críticas

Cineplayers

Pecado com gosto de manga.

9,0
Talvez a maior surpresa do Cine PE desse ano, o diretor Alex Levy-Heller estreou em longas de ficção com essa adaptação de um poema de Samuel Taylor Coleridge, do século 18. O poema ficou inacabado, então Levy-Heller tratou de interpretar à sua maneira aquele escrito, dando-lhe um final que aparentemente já estaria sugerido mesmo. Agora, observem a coragem e a ousadia: em um primeiro trabalho, a busca pelo complexo e pelo denso, pela roupagem inusitada a um produto originalmente clássico. Já entrar em Christabel com essa admiração, mas também com a pressão de corresponder a ela, é uma escolha arriscada de um cineasta muito jovem, mas que banca suas atitudes.

O conto está inteiro no filme. Na abertura, uma mulher foge pela floresta e termina por ser resgatada por uma jovem, que a leva para a casa onde ela reside com o pai. Essa tensa sequência inicial é a porta de entrada para um universo a se desdobrar gradualmente em tela, um mundo de silêncios que aos poucos vai se deixando contaminar pela chegada daquela figura cuja fragilidade inicial esconde um incrível poder de sedução, para além do jogo que se estabelece entre as três personagens. Ao percebermos que Geraldine passa de um polo a outro dentro do jogo cênico, a certa repetição desse recurso de desenho de personagem e situação é minimizada pelo exterior ao roteiro, que alicerça um espetáculo superior a sua base, inclusive realçando-a.

É pertinente observar que Alex Levy-Heller é não apenas o diretor do longa, mas também seu roteirista e montador. Ele é literalmente o senhor do projeto, e talvez por isso tenha uma visão tão ampla sobre o todo. Em Pernambuco, muito foi cobrado dele quanto ao ritmo do filme. A verdade é que Christabel é um bicho arriscado para a estrutura do festival, que encadeia blocos de curtas seguidos ao longa da noite, e o filme de Alex de fato não é curto, e não é ágil - se compararmos ao cinema-pipoca de fácil consumo produzido em massa hoje. Mas o autor por trás da obra não tinha essa estrutura em mente, e a imersão na obra pode ter sido prejudicada pelo formato da competição. O filme se prova maior que isso com a força de suas imagens, com o rigor implacável dos seus enquadramentos e com o crescente de proposta estética buscado.

Não, não estamos diante de um produto para assistir em ritmo de passatempo, tampouco é um filme experimental. Vinicius Berger é o homem por trás da fotografia e o trabalho conjunto dele com Alex é um dos responsáveis por essa aglutinação de sintonias, criando esse filme ambíguo e também acessível. As escolhas de luzes e as cores utilizadas são não apenas inusitadas, como permitem ao espectador adentrar aquela atmosfera do longa que se divide entre o delírio e a realidade, marcando em pontos específicos sua intenção (a manga, o rio, a sopa, a grama). Esse mesmo trabalho conjunto produz momentos idílicos de extrema beleza plástica - a pescaria do pai, o encontro do mesmo com o andarilho - e outros onde o encanto vem da coreografia das lentes, como em todas as cenas entre Christabel e Geraldine, principalmente o diálogo enquanto a primeira alimenta a segunda.

O trabalho do elenco é todo uniforme. As protagonistas Milla Fernandez e Lorena Castanheira (também produtora) vão além do talento, elas possuem química, e o filme não poderia ser mais feliz por contar com uma convergência de ações tão intensa quanto a delas, uma alimentando a performance da outra. As presenças breves de Alexandre Rodrigues e Nill Marcondes tem sua importância no todo, e Julio Adrião consegue impactar com sua postura e experiência. Mas Alex sabe que o foco desse seu primeiro projeto de ficção é a relação feminina que deveria ser captada com delicadeza e ao mesmo tempo força dramática. Sempre com respeito, o diretor consegue um belo trânsito entre um ritual de despedida da infância e um despertar sexual, talvez ambos tardios e por isso tão intensos e febris.

Um longa muito corajoso e carregado de paixão latente, que consegue fazer uma ponte entre diversos elementos já abordados antes no cinema, travestindo-os com um verniz da melhor qualidade, até chegar em uma espécie de explosão sensorial, um clímax ao som indefectível de Markinhos Moura, que reverbera para fora do filme e nos faz mergulhar em um desfecho climático e sombrio cheio de possibilidades, trazendo uma abertura para o cinema de gênero que se harmoniza completamente com o filme elegante que Alex Levy-Heller compôs durante todo o tempo.

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