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Críticas

Cineplayers

Do direito de ter dúvida.

8,0

Nas primeiras cenas do longa de João Salaviza e Renne Nader Massora já entendemos que terá uma tentativa de adequar o caráter indígena, como registram tudo que vem sendo feito no cinema ultimamente. Nem exaltar a pureza de sua vida intocada, nem retirá-lo de seu habitat natural por completo e naturalizar uma cultura. Caminham lado a lado na produção as duas vertentes de adequação, criando um modelo híbrido que deve ser o comum a tantas tribos hoje - como esse ano já vimos, por exemplo, em Ex-Pajé. Ao confrontar uma realidade paralela a um personagem típico da nossa cinematografia e desestigmatizar a própria relação do personagem com suas crenças, sua formação e sua história, talvez aí sim pela primeira vez vejamos as contradições do nativo.

Não se trata de reinventar o que se espera de si para tornar-se outro (como o protagonista de Antes o Tempo não Acabava, de Fábio Baldo e Sérgio Andrade), mas de não se enxergar nos costumes de seu povo, renega-los, até mesmo teme-los, e ousar não querer sua função, determinada à sua revelia. Como já visto em tantos recortes e tempos da sociedade, porque o índio não pode fugir à sua pré-determinação? O futuro chegou a todos, e Ihjâc também quer poder escolher o seu destino, e não ser subjugado a ele. Com essa proposta de discussão, o casal de diretores enfoca essa relação universal familiar da continuidade, do caráter provedor adquirido pelo homem e alimentado pela sociedade machista, e da negação da herança hereditária.

Ihjâc é um jovem pai, casado, aparentemente feliz com sua estrutura familiar tão recente. Só que a abertura do filme já abre seu conflito, ao observar o protagonista em contato com o espírito de seu pai recém falecido, o pajé de sua tribo. Esse cargo agora, de óbvia responsabilidade, recairá sobre ele, e ele não esconde de ninguém sua recusa para com o fardo. Ele simplesmente não quer, não aceita, tem medo da função, a ponto de abandonar seu núcleo inteiro para trás; está confuso, e se isola sozinho na cidade mais próxima. Ihjâc não difere de nenhum jovem adulto apreensivo com o fim da adolescência: decisões precisam ser tomadas, muitas serão definitivas, em uma idade injusta para tal.

Impetuoso e cheio de personalidade, o personagem é um achado no cinema recente e dentro dos exemplares que retratam essa parcela brasileira (que muitos querem fingir não existir) é dos melhores. Ihjâc é pura angústia e faz valer suas vontades, numa sociedade onde os ancestrais têm palavra final. Além do próprio protagonista, o dia a dia da tribo dos krahôs do qual ele faz parte é mostrado de maneira carinhosa e com certo detalhe, inclusive os preparativos para o que seria uma passagem de bastão, de pai para filho. O naturalismo utilizado nos dois lados (a rotina daquele universo e a tentativa de integração de Ihjâc na cidade próxima) é patente e enriquece ainda mais o longa.

Apesar de colocar em cima da mesa os prós e contras das decisões de Ihjâc e sua liberdade de escolha , João e Renee acabam tomando um rumo com sua narrativa que fará dividir seu público, quando talvez fosse melhor deixar no terreno do ambíguo os rumos que o personagem tomasse, tendo em vista a maneira imparcial com que o filme apresenta seu conflito. Mas não deixa de provocar também um debate sobre o estado das coisas, sobre a liberdade que se anseia e a tradição que se constrói, e de como já vimos esse conflito tão próximo a nós mas longe do cinema, e mais longe ainda dessa parcela. As escolhas de Ihjâc no fim das contas soam menos importante do que o direito dele de tê-las, e questionar sua validade.

Filme visto no Festival de Cinema do Rio de Janeiro

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