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Cidade dos Sonhos

(Mulholland Dr., 2001)
8,5
Média
800 votos
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Sua nota

Críticas

Cineplayers

A terra dos sonhos perdidos.

10,0

Obs: As informações contidas no texto revelam detalhes importantes do filme.

Depois de se emocionarem ao ouvir uma comovente apresentação musical dentro de um clube chamado Silêncio, Betty (Naomi Watts) e Rita (Laura Harring) notam subitamente a presença de uma chave azul dentro da bolsa de Betty. A chave abre uma misteriosa caixinha azul de procedência indefinida, achada na bolsa de Rita um dia antes. A partir do momento em que as duas decidem abrir essa caixa, finalmente Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001) deixa de rodear o sombrio e o bizarro para sugar personagens e espectadores para seu labirinto de enigmas, sensações e onirismo. A partir daí tudo o que vimos até o momento desmorona e o verdadeiro Lynch então latente escapa e abraça o universo que escolheu retratar em seu filme: o mundo dos sonhos perdidos de Hollywood.

Mas antes de chegarmos a esse ponto, temos construída uma base aparentemente linear para a história. Sabemos que Rita é somente um nome aleatório escolhido para identificar a mulher estranha que apareceu escondida no novo apartamento de Betty, depois de ter sofrido um acidente de carro e perdido a memória. Rita quer saber de onde veio, quem é, e para onde estava indo com aquela bolsa cheia de dinheiro quando houve o acidente que lhe roubou as lembranças. Betty acaba de vir do interior com o sonho de virar uma grande atriz de Hollywood, mas não consegue ficar indiferente diante do problema daquela misteriosa mulher e agora ambas devem descobrir os passos que Rita percorreu até chegar ali. Do outro lado de Los Angeles, se desenrola a história do cineasta Adam Kesher (Justin Theroux), que é obrigado pela máfia a escalar determinada atriz para protagonizar seu próximo filme.

Entre essas duas tramas paralelas, há pequenos indícios e detalhes bizarros, que parecem indicar um perigo iminente. E esse é um dos pontos fortes de Cidade dos Sonhos – há sempre uma ameaça no ar, mas nunca há informações o suficiente que a concretizem ou que pelo menos deem uma pista sobre o que se trata exatamente. Por exemplo, há uma breve sequência em que dois homens conversam em uma lanchonete, na qual um deles revela ter pesadelos constantes com aquele local, onde um homem de aparência medonha, que está nas redondezas, parece querer se aproximar. Quando o tal homem de fato aparece, com um aspecto de mendigo, surge mais uma dica de Lynch sobre o universo de Cidade dos Sonhos; afinal, é um elemento onírico invadindo a realidade daqueles dois homens, a concretização horripilante de um pesadelo.

E apesar de os personagens terem sempre um desejo ou um objetivo em mente, parece que somente os seus maiores temores que acabam se materializando na realidade (seja Adam com seu filme sendo violado, seja Rita se apavorando conforme mais descobre sobre sua própria identidade). De repente, aquela aura de sonho e magia se corrompe com a inserção desses elementos de pesadelo insistindo em se infiltrar (o Cowboy que ameaça Kesher, o mendigo, as figuras estranhas a se apresentarem no Clube do Silêncio, o misterioso casal de velhinhos que viaja com Betty etc.). A única exceção é Betty, que vem para Los Angeles, fica em um apartamento estiloso na Sunset Boulevard, arrasa em um teste para conseguir seu primeiro papel como atriz, e ainda acaba faturando no amor ao se apaixonar por Rita. Por que será então que neste filme somente os sonhos de Betty se tornam realidade?

Embora seja um equívoco tentar achar liga para todas as questões que permeiam Cidade dos Sonhos, assim como é vão tentar entender plenamente um filme de David Lynch, dá para se ter uma noção do que realmente está acontecendo, principalmente a partir do ponto em que a caixa azul nos suga para um universo mais sombrio, ou uma espécie de versão de pesadelo para todos os fatos ocorridos até então. Agora não existem mais as parceiras Betty e Rita, e sim o casal de namoradas Diane Selwyn e Camilla Rhodes, respectivamente. Ambas são atrizes, mas somente Camilla é bem sucedida, enquanto Diane vive de pontas nos filmes de sua amada. Depois de trabalharem em um filme dirigido por Adam Kesher (este o mesmo personagem nos dois tempos do filme), Camilla acaba se apaixonando pelo diretor, deixando Diane e anunciando cruelmente seu noivado na frente de sua ex-namorada. Some-se essa nova trama ao que vemos logo nas primeiras cenas do filme, com uma série de casais dançando, todos com rostos parecidos, que se trocam, se misturam a toda hora, assistidos e aplaudidos por Diane/Betty, ao lado do casal de velhinhos, frisando o jogo de duplicidades e dicotomias que se faz presente na obra; e na cena seguinte, quando a câmera subjetiva mergulha de cara em um travesseiro. Pronto, não é preciso pensar muito para desvendar o primeiro mistério de Cidade dos Sonhos, cujo próprio título nacional denuncia: tudo se trata de um sonho. Mais especificamente, um sonho de Diane Selwyn.

Lynch remodelou vários conceitos tradicionais dos filmes de máfia e dos filmes noir para compor um gênero próprio, repleto de onirismo e bizarrices, mas não por isso unicamente assustador. Na verdade, apesar de toda a tensão e horror, Cidade dos Sonhos é um filme sobre o amor. O amor infeliz de uma garota interiorana, que tenta a vida na cidade das ilusões, mas que jamais conseguiu seguir em frente com seu desejo de ser atriz, e que ainda teve seu coração despedaçado pelo amor de sua vida. Ela é a personificação de um típico personagem principal de filmes noir – amargurado, desiludido, traumatizado, passional, e potencialmente perigoso, em especial depois de sofrer nas mãos de uma misteriosa femme fatal (no caso, Rita/Camilla). Por subverter tais tradições para adequá-las ao seu cinema onírico e sem nexo, Lynch montou uma espécie de protesto, de manifestação contra a imagem de terra dos sonhos de Hollywood – que junto com A Estrada Perdida (Lost Highway, 1997) e Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006) forma um tipo de trilogia que visa mesclar em um único plano os sonhos em seu sentido literal com o uso figurado da palavra para descrever os encantos passageiros que parecem permear a indústria do cinema. Desconstrói assim o sonho no sentido de desejo dentro de um contexto de sonho/pesadelo literal. Basta ver na figura de Adam Kesher e seu núcleo um pouquinho, ou muito, do próprio Lynch.

Podemos entender basicamente a ligação entre os dois atos através da sequência da festa na casa da mãe de Adam Kesher, quando Camilla cruelmente anuncia seu noivado na frente de Diane. Quase todos os acontecimentos que se desenvolvem nessa festa ganharão uma representação no sonho de Diane, na primeira metade do filme. O ódio que ela desenvolve por Camilla a faz juntar uma quantia absurda para contratar um matador de aluguel, que lhe dará uma chave azul como garantia do término do serviço, e isso se reflete no sonho através da bolsa cheia de dinheiro e com a caixinha azul de Rita. O cowboy que inferniza Adam Kesher no sonho nada mais é que um convidado estranho transitando pela festa, uma representação do ódio de Diane, que o projeta como arma para punir seu concorrente. O mafioso que cospe rudemente um gole de cappuccino durante o sonho, também não passa de um convidado na festa que Diane vê tomando uma xícara de café. A misteriosa Camilla Rhodes do sonho, a atriz que querem obrigar Kesher a contratar, também é uma das convidadas da festa, que troca um selinho com a verdadeira Camilla durante o jantar. Ou seja, os acontecimentos dessa festança formam juntos a força propulsora para que Diane decida matar sua amada e depois venha a sonhar com tudo isso, misturando tudo em seu subconsciente, que devolve as informações em uma versão nova, onde tudo parece acontecer nos conformes segundo as vontades da sonhadora.

Alguns outros elementos estranhos, como o mendigo, o Clube do Silêncio e o casal de velhinhos podem ser interpretados de inúmeras formas. Primeiramente, o mendigo nada mais é que um elemento de caos e horror transitando solto pela história, aparentemente insignificante, mas que causa um tremendo impacto no espectador com sua rápida aparição assombrosa, e portador da caixa azul (que simboliza o “portal” para a realidade), o que talvez indique que sua figura assustadora nada mais seja que a personificação do medo e da realidade em um único entendimento. O casal de velhinhos talvez seja a lembrança materno-paterna de Diane, sua base moral que a condena pelas suas ações criminosas (no sonho ambos lhe dão apoio e felicitações, enquanto na realidade aparecem como assombrações condenatórias). Por fim, temos o Clube do Silêncio e a participação mais pessoal de Lynch dentro dessa história toda. Costumeiras na filmografia de Lynch, as cortinas vermelhas sempre anunciam a chegada de uma grande reviravolta, como se abrissem passagem para que a realidade e a ficção se descubram, se surpreendam, se choquem e se vejam refletidas frente a frente – e elas se mostram presentes no palco onde se apresentam os participantes da noite no Clube do Silêncio, como o misterioso anfitrião que insiste em dizer que não há banda, embora haja música tocando, e que tudo ali não passa de uma ilusão. É nesse momento que todas as intenções de Lynch com seu filme se convergem, com a ficção se inserindo na realidade, e vice-versa, quando o sonho começa a desmoronar, e o diretor se comunica diretamente com o espectador, questionando a lucidez daquela história, e como pudemos acreditar até aquele ponto em tudo o que se passou, mesmo com tanta coisa bizarra acontecendo (afinal, durante os sonhos quase nunca percebemos que há algo fora do normal, só o despertar nos permite raciocinar que havia alguma coisa absurda ou ilógica). É o momento do chamado; o chamado para que Diane acorde e encare as consequências de seus atos agora que a chave azul apareceu e trouxe a confirmação da morte de sua amada, unida ao seu lado naquele momento do sonho, mas já morta na realidade; e o chamado do diretor para o público, brincando com o poder ilusionista da imagem, e do cinema em geral.

Ainda há outras evidentes constantes de Lynch neste trabalho, como o telefone preto tocando sem parar, sem que ninguém o atenda na maioria das vezes, e o uso de espelhos para simbolizar a dicotomia de seus personagens. Rita, por exemplo, está se olhando no espelho quando Diane pergunta seu nome, e depois de refletir em sua imagem não consegue achar uma resposta, recorrendo à foto de Rita Hayworth refletida ao fundo do quarto para lhe servir de inspiração e inventar uma nova identidade. Afinal, nos sonhos podemos adquirir novas personalidades, novas vidas, embora ainda sejamos os mesmos – duas almas em um único rosto. Resumindo, a grande questão da identidade sempre presente nos filmes de Lynch, dos conflitos entre o que você tenta ser e o que você realmente é, sem chances de fuga. E nessa de brincar com rostos e situações que se repetem, cada vez mais sombrios, temos um grande trabalho na direção e uma das mais belas histórias de amor trágico dos últimos anos. Um trabalho que usa o sonho como máscara, que esconde a verdadeira realidade, o verdadeiro “eu” de cada um – assim como, num entendimento maior, acontece em Hollywood, rodeada pela cidade dos sonhos, mas verdadeiramente oposta ao que todos idealizam quando se recai a realidade. Tal como a vizinhança perfeita e quase onírica de Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), que esconde por trás de sua fachada um mundo apodrecido e mergulhado em escuridão, ou um pesadelo real; ou as verdades escondidas por trás da pacata cidadezinha de Twin Peaks, em Twin Peaks - Os Últimos dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire Walk With Me, 1992), onde uma garota aparentemente comum e ingênua se mostra, por trás das máscaras, uma pessoa seriamente perturbada por todo o tipo de assombrações. Num plano geral, podemos enxergar na obra de Lynch essa construção da vida ideal americana, que de tão perfeita só poderia existir em sonhos, e que por isso desaba diante da chegada de um inesperado pesadelo. Só que para Lynch, no caso dos pesadelos, não há como acordar e tudo desmoronar como nos sonhos – muito pelo contrário, o horror está em descobrir que você está acordado, e que tudo que te rodeia não passa da mais pura realidade. 

Comentários (33)

Gilberto C. Mesquita | quinta-feira, 09 de Julho de 2020 - 23:03

Comentário, simplesmente brilhante! Um dos melhores textos que já li, não só em relação à "Cidade dos Sonhos", como a todas as críticas cinematográficas em geral. Graças ao texto, consegui "fechar" várias ideias que me pareceram desconexas, mesmo tendo assistido ao filme umas 6 vezes (pelo que consegui lembrar da contagem, mas pode ter sido mais). Realmente, encontrar "solução" para todas alegorias e referências (ou deferências) que David Lynch faz, não só às suas próprias obras, como a alguns mestres da 7ª arte, como Alfred Hitchcock ("Intriga Internacional"), Billy Wilder ("Crepúsculo dos Deuses"), Ingmar Bergman ("Persona - Quando Duas Mulheres Pecam"), entre outros, não é tarefa das mais fáceis.
(Continua...)

Gilberto C. Mesquita | quinta-feira, 09 de Julho de 2020 - 23:48

(Continuação...)
Contudo, mesmo tendo pesquisado em outras críticas e comentários sobre o filme (ouvi também o podcast do site), uma única coisa ainda me incomoda, por não ter encontrado o significado mais apropriado: o uso frequente (e até ressaltado) da cor verde (os bancos da lanchonete, com os cartazes ao fundo, a caixa registradora, as pilastras, o corredor, os corrimões; o sofá da sala do Sr. Roque; os travesseiros da cama, as cortinas do quarto e a pia do banheiro da Betty e, no Apt da Diane, a coberta, o sofá, detalhes da mobília, incluindo um ventilador parado, que foi frisado numa cena impactante de angústia dela; as cadeiras da sala de reunião nos estúdios Ryan; detalhes do cenário da "sala de teste" das atrizes cantoras; atc), praticamente, na mesma proporção que o vermelho e até mais que o azul (a explicação dessas nuances entre o azul, vermelho e também espelhos ficou perfeita, tanto na crítica quanto no podcast). Enfim, há significado especial para o uso do VERDE?

fernandopeixer | domingo, 11 de Junho de 2023 - 21:10

Depois de muitos anos na minha lista de favoritos, hoje finalmente assisti Cidade dos Sonhos. Sua crítica é sensacional, meus parabéns. Da metade para o final do filme eu já estava com a sensação de que teria que vê-lo novamente, assim que acabou eu tinha certeza, mas após ler esta crítica cheguei à conclusão de que irei fazer isso o quanto antes. Que baita obra de arte.

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