Saltar para o conteúdo

Críticas

Cineplayers

Entre diálogos constrangedores e metáforas sobre a crise de indivíduos em queda, alguns tons de surpresa.

6,0

Talvez hoje não exista sequer uma pessoa no mundo que não saiba do que se trata a novela de EL James, publicada há 3 anos atrás e um fenômeno desde então. O que talvez alguns não saibam é que a autora britânica criou sua trilogia romântica-sexual com base num grupo de fãs de Crepúsculo, conhecido como fanfiction, e que seus primeiros esboços nada mais eram do que versões eróticas da saga de Edward Cullen e Bella Swan. Até por se tratar disso, qualquer leitor que procurasse qualidade ficaria longe do novo sucesso literário, mas a verdade é que hoje mais de 100 milhões de exemplares já foram vendidos mundo afora dos seus 3 exemplares e, de cara, a Universal comprou seus direitos para o cinema numa bagatela (de 5 milhões), cujas continuações foram oficialmente confirmadas mês passado. Leitores exigentes, espectadores exigentes, críticos ainda mais... Afinal, a quem serviria uma adaptação cinematográfica de algo como Cinquenta Tons de Cinza, se não a mocinhas sonhadoras com alguma pimenta ou senhoras desanimadas, ambos grupos majoritariamente encrustados na América do Norte? Pois reveja seus conceitos, como eu bizarramente revi os meus.

Não, não estamos falando de um bastardo de Bergman, um petardo da categoria de Godard ou mesmo um neoclássico anglo-saxão das escolas de Kubrick ou Scorsese; desfaça do mau humor e da má vontade que a diversão está garantida, e camadas insuspeitas de subtexto sócio-cultural dão as caras, fazendo da experiência uma das sessões mais intrigantes da temporada. Afinal, na trilogia de papel encontramos tudo isso também, ou a roteirista Kelly Marcel de fato 'se virou nos 30'?

De cara, vejo gritando como o horrendo quinteto de filmes sobre o triângulo amoroso envolvendo uma humana, um vampiro e um lobisomem gostaria de ter 10% dos valores de produção que esses tons apresentam. Trilha de Danny Elfman, figurino de Mark Bridges, fotografia de Seamus McGarvey, perco a conta de quantas merecidas indicações ao Oscar eles conseguiram reunir entre os técnicos escalados. Detalhe: ninguém foi contratado e deitou sobre o dinheiro ganho não (como um certo filme dirigido por uma certa esposa de um certo Brad Pitt demonstrou ser capaz); tecnicamente requintado, com cenários excelentes, com uma iluminação de fazer inveja a vencedor de prêmio - atenção à esbasbacante cena da "reunião" entre os protagonistas, toda perfeitamente fotografada e montada - e com uma soundtrack escolhida a dedo, o filme realmente assusta. A clara mensagem é a de que não precisa servir ração vagabunda a um público consolidado, já que há a possibilidade de banquete.

Obviamente que não havia como fazer milagre com o texto, afinal deviam haver certas passagens que as fãs não permitiriam deixar de fora, mas também nenhuma necessidade de criar a pólvora, apenas caprichar na embalagem já seria suficiente para o ávido grupo de seguidores dos romances. Então, estão lá a nada disfarçada releitura de todas as histórias românticas que o cinema e a literatura já explora: moça jovem e virginal cai de tesão (vamos deixar claro que é isso mesmo que a moçoila sente a primeira vez) por um riquíssimo jovem empresário e ambos aos poucos engatam algo parecido com um romance, que se descortina (aí sim!) com certa ousadia temática, afinal, o moço é adepto de todo tipo de prática sadomasoquista que se ouviu falar (a julgar por seus aposentos), única e exclusiva, sem espaço para romance na ordem do dia. Os diálogos acabam variando entre o "ingênuo" e o "hardcore cavalheiresco", com alguns momentos engraçados (no mau sentido). Escolheu-se um casal muito bonito e esforçado (afinal, o produto não necessitava de Ryan Gosling ou Saoirse Ronan) que foram bem ensaiados e conseguem convicção nas cenas expressivas e também nas ousadas. Ah, elas existem... Mas não preciso deixar claro que sites pornográficos estão aí pra isso, e diretores europeus ousados como Lars Von Trier e Abdelatiff Kechiche não precisam responder por um lançamento em 4000 salas americanas, por isso podem arcar com sexo semi explícito. Não há porque cobrar além da ousadia que o filme já demonstra.

Mas e o público que nunca leu esses raios desses livros? E que não é uma mocinha moderna que esconde um livro 'guilty pleasure' no fundo do seu tablet? O alcance de Cinquenta Tons de Cinza é  tão restrito assim? Sim e não. Sim, porque obviamente há um preconceito monstro com o material, que inclusive eu entendo já que não falamos de nada além de uma ficção barata e mal escrita que caiu nas graças da massa. E não, porque vencer esse preconceito é descobrir a infinidade de camadas que a diretora Sam Taylor-Johnson e a roteirista Marcel enfiaram no produto. Porque tudo que eu escrevi acima interessa basicamente às fãs apenas, embora eu aponte vários predicados no material final. Só que independente disso tudo, pra mim, Cinquenta Tons de Cinza mostra um mundo em ruína, uma sociedade que precisa mudar para alcançar o patamar que necessita para o recomeço, um retrato sobre a crise econômica atual do ponto de vista dos intrépidos e dos destemidos, que precisarão apertar os cintos e demonstrar sobriedade nos novos tempos.

A falência moral individual também está lá, através do homem mais que ousado que cai por terra diante do novo, do não vivido e do intocado. Um homem em busca das mesmas jornadas e das mesmas emoções baratas, que percebe numa curva que seu mundo já pode não ser mais tão instigante assim. Um homem que não tem nada de príncipe encantado, que só é perfeito através do binóculo, mas que demonstra todas as suas ranhuras sob qualquer lupa. Um filme sobre reinvenção de ambas as partes... Nada sexista, sem a bobajada feminista de "mostrar que a mulher precisa ser puta/submissa para encontrar o amor" (o cúmulo da observação vazia e idiota, de quem "não viu e não gostou") - até porque Anastasia de boba não tem absolutamente nada e faz o Sr. Grey comer na mão dela no segundo encontro - mas acima de tudo, um filme sobre escolhas, as certas e as erradas. Homens e mulheres são aparentemente fortes hoje em dia, em iguais condições de ganhar batalhas no mundo moderno, mas ainda tem muito a aprender nas relações amorosas e interpessoais, onde as desconfianças, o medo do novo e a necessidade de ceder ainda emperra relacionamentos, igualzinho a séculos atrás.

E sim, esse texto está falando de Cinquenta Tons de Cinza, o filme "vazio e ordinário" que está tomando de assalto as telas do mundo todo a partir desse fim de semana. Que início inusitado para algo que nem deveria se pretender tanto assim, hein...

Comentários (23)

MARCO ANTONIO ZANLORENSI | quarta-feira, 18 de Fevereiro de 2015 - 16:54

Se o filme vale a pena só assistindo pra ver, haja coragem, mas essa crítica tá muito boa, parabéns!!!

Luciano Rosa dos Reis | domingo, 01 de Março de 2015 - 16:30

Impossível não ver esse filme como uma versão mais apimentada e doentia de "Crepúsculo". Só não aborda uma temática sobrenatural, nem envolve criaturas místicas, por que a essência é a mesma, um amor/tesão/paixão inexplicavelmente extasiante para o casal protagonista, instigado por ser proibido/inalcançável, representado sob uma narrativa lenta, com atuações ora exageradas, ora apáticas, entre suspiros carregados e encaradas desconcertantes... tudo muito chato e superestimado. Só agradará mesmo aos fãs, e olhe lá...

Alexandre Marcello de Figueiredo | domingo, 31 de Maio de 2015 - 18:21

Há um preconceito com o filme, até quem não viu diz que não gostou. Custa assistir? Pelo menos terá base para falar mal do filme.

Davi de Almeida Rezende | domingo, 07 de Junho de 2015 - 06:23

O crítico adorou, mas não quer ou não pode admitir, pois pegaria mal, kkkkkkk...
O filme não é ruim! Pelo menos não no que se propôs a fazer!
E olha que sou bastante crítico de blockbusters sem conteúdo, o que não é o caso de 50 tons de cinza.
A crítica ficou um pouco prolixa, como é de costume aqui no CP.
Mas pelo menos o autor foi sincero em vários momentos indo contra a todo esse preconceito que o filme sofre e até deu uma nota razoável ao longa. Menos mal.

Faça login para comentar.