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Críticas

Cineplayers

Christian Grey, psicopata americano.

3,0

Nos últimos quatro anos, Cinquenta Tons, a trilogia da cor da escritora E. L. James, trouxe o sexo novamente para a pauta do público amplo através de uma trama que abordava o sadomasoquismo praticado por um bilionário, e como isso afetava a vida da protagonista virginal. Causa surpresa a influência que as obras causaram no público conservador dos Estados Unidos, numa época em que o cinema de gênero busca classificação etária baixa e a censura classifica vertentes do sexo como "comportamento estranho". É interessante o sucesso de uma obra que toca nesses temas, e nisso a qualidade da obra original não entra em questão - e analiso o filme sem ter lido nenhum dos livros.

Nos créditos iniciais, um ambiente acinzentado, fotografado com dessaturação, é palco para o trânsito de um carro caro, luxuoso, destacado na estrada ampla. Numa viagem de helicóptero, Seattle é fotografada como uma cidade luminosa, elegante, mas curiosamente vazia vista de cima, visão do ricaço literalmente privilegiada, quase utópica. No apartamento, toca piano como forma de exorcizar seu vazio interior. Nas relações, permanece distante, proibindo-se de qualquer envolvimento. No trabalho, aparece apenas para provar que aquilo tudo é dele, sem efetivar ação alguma ali. Perto do clímax (ou seja lá o que seja o desfecho), o bilionário desfruta de seu planador com a parceira, um exercício de poder que se repete ao longo do filme sem que o homem perceba que algo está errado.

Não espanta o interesse manifestado pelo escritor Bret Easton Ellis no filme à época de pré-produção. Famoso pelo romance Psicopata Americano, Ellis deixa clara uma predileção pelos ambientes da alta roda estadunidense, cheia de segundas intenções e ironias veladas. O vazio da existência de Patrick Bateman se revela através da forma que lida com a sua realidade, seja mental ou social, e com Christian Grey não é diferente. Ao passar um filme inteiro mantendo a rotina de atitudes obsessivas e hobbies caros (o que inclui a filantropia absurda, que sustenta um império financeiro mas quer erradicar a fome na África), Grey revela-se um sociopata absoluto, interessante como personagem justamente pelas contradições, perigoso em função da excitação sexual e metafórica que sente com seu poder. A presença da atriz Dakota Johnson, que mesmo presa a uma personagem vazia mantém o cinismo contido como destaque do filme, serviria como bússola clara para toda a distopia contemporânea do magnata, a irregularidade necessária para conflito nos absurdos caricatos propostos por Grey, o ricaço que transforma relacionamento em corporação sujeita a contrato.

Mas o filme não percebe absolutamente nada disso diante da câmera, e Grey é visto como um príncipe encantado do século XXI que "fode, não faz amor", o pobre menino rico vítima da sua infância. Por duas horas fica preocupante acompanhar a dedicação ao redor da aproximação da pobre estudante de literatura com um maluco completo. O desperdício de potencial do setting fica em segundo plano de discussão quando se percebe que quanto mais Anastasia se apaixona por Christian, mais é apropriado para o espectador sentir-se um sádico - e isso nada tem a ver com as fantasias do sexo, um assunto que o roteiro não parece entender sobre, considerando fetiche como algo violento. O sadomasoquismo já fora abordado como fetiche sem preconceitos sem cair na armadilha dos traumas pessoais - Cronenberg, por exemplo, aborda o assunto como antes um autoconhecimento que um distúrbio -, que permeiam todo o longa, como se o problema de Christian Grey fosse o apreço pelo S&M, e não todo o resto. Só de entender que o nível máximo dessa forma sexual é a violência gratuita, como uma surra de cinto, já demonstra um equívoco perigoso do filme.

A naturalidade que a diretora Sam Taylor-Johnson filma de início os chicotes e cordas usados no sexo é louvável, mas quando o passado do homem é revelado com gravidade suspeita, tentando justificar o sexo como culpa e punição pelas consequências da vida, reduzindo toda a carga de excitação a uma preliminar para uma espécie de tortura, o conceito se confunde e toda a curiosidade vira uma perversão devido ao passado turbulento. Anastasia ainda mantém certo controle sobre a situação, mas só foge de verdade quando se depara com o inaceitável absurdo.

O fato de sexo ser algo que aparece muito pouco em Cinquenta Tons de Cinza não espanta, considerado o contexto; bom mesmo era Paul Verhoeven, que transformava até as luta de O Vingador do Futuro em algo sexual, que entendia que demonstrações de poder, seja no relacionamento ou na ação, são questões psicológicas - e perto do sexo do filme, nível abóbada refletindo um sexo no céu estrelado, Instinto Selvagem seria visto hoje como pornográfico.

O excesso de limpeza e fotogenia, que gera esse sexo de poses sem calor humano, funcionaria a contento caso Cinquenta Tons fosse o estiloso romance que pretende ser, cuja fotografia, figurinos e design de produção evocam com eficácia elegância quase intrínseca àquele mundo. A dramaturgia, no entanto, é preguiçosa em todos os temas que sugere, restringindo-se a acompanhar as investidas de Grey e a forma que Anastasia reage a elas por três longos atos. Cenas que gerariam uma fuga da relação do casal, como os núcleos familiares de ambos, não servem nem para tentar resolver arcos dramáticos; tanto a amiga de Anastasia quanto sua mãe e a de Grey saem da projeção como dois mistérios, personagens unidimensionais que nem bons diálogos entregam. Até nesses núcleos os dois acabam juntos alguma hora para trocar conversas redundantes, nunca inconveniência e espaços individuais foram tão ignorados em um filme "romântico".

O que mais frustra na adaptação é que um olhar faria toda a diferença, inclusive se o roteiro permanecesse o mesmo. Ajuda o fato de ser roteirizado e dirigido por mulheres, que criam uma protagonista com vontades e desejos sem a todo momento sucumbir à submissão imposta pelo macho, mas pouco adianta vestir camadas de estilo a uma trama tão pobre e com medo de abordar os tantos temas que levanta, involuntariamente ou não.

Em certo momento, Christian fala para Anastasia que "eles não podem ficar juntos", que ele "não é homem para ela", que ela "precisa manter distância" dele. É uma lufada de conforto lembrar a reminiscência evidente de Crepúsculo, uma outra obra delirante de sua grandeza que ironicamente erra de formas diferentes de Cinquenta Tons de Cinza, a fanfic que cresceu demais.

Comentários (8)

Yuri Mariano | sábado, 21 de Fevereiro de 2015 - 01:39

Papaléo em grande forma. (3)

Yuri Mariano | sábado, 21 de Fevereiro de 2015 - 01:58

Muito boa a crítica. Não tenho opinião formada, pois não li o livro (uma amiga me disse do que se tratava, e resolvi não perder meu tempo).
Após ler esta incrível resenha do senhor Papaléo, assim como o livro, não irei desperdiçar meu tempo, assistindo este filme.

Alexandre Carlos Aguiar | terça-feira, 24 de Fevereiro de 2015 - 10:09

Eu sou daquele tipo que me intero do assunto discutido no mundo ao redor, mesmo não sendo do meu interesse. Tipo: ainda que seja ateu, leio a Bíblia. Mesmo odiando BBB, assisto a alguns "episódios". Não sou de ficar de fora do assunto, ainda que o deteste. Por isso, li dois dos livros da trilogia (??) dos shades of Grey. Não consegui ler o terceiro, porque aí seria autoflagelação. E até que tem alguma coisa apreciável, desde que a gente se desfaça de conceitos pré-estabelecidos. O filme, que ainda não vi, mas já sei pelos comentários em diversos canais, é uma bomba. Se quiser sexo dos anjos na TV é muito melhor assistir às madrugadas do canal MultiShow. Todavia, ainda com tudo isso, acho curiosas as manifestações da maioria das mulheres. Aliás, preocupantes. Alguma coisa que nós, machos, estamos deixando de fazer? 😏

Davi de Almeida Rezende | domingo, 07 de Junho de 2015 - 06:49

Novamente o crítico se preocupa em escrever tanto - o que é sempre bom lembrar é um vício de linguagem - que acaba se equivocando.
"Grey revela-se um sociopata absoluto","maluco completo", com base em que se afirma isso? Qual relação entre ser bilionário "controlador" e que curte sadomasoquismo com ser sociopata ou maluco? Aliás, o roteiro até mesmo se preocupou em construir um personagem certinho e lúcido.
E o filme não mostra nenhuma "violência gratuita", pois se aborda o fetiche do sadomasoquismo, que nem tem muitas cenas disso, é óbvio que deve mostrar uma certa violência intrínseca ao ato.
Quanto ao "sexo ser algo que aparece muito pouco", até concordo que o filme poderia ter explorado mais cenas de sexo se quisesse, mas dizer que foram poucas, é até alucinação. O filme é inclusive erótico.
A primeira coisa que um crítico deve ter, antes mesmo de entender sobre o que escreve, é PERSONALIDADE, para ter o necessário distanciamento e poder avaliar filmes sem preconceitos.

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